Folha de S.Paulo

Disparidad­e regional agrava mortalidad­e, aponta estudo

Taxa de mortes entre internados na UTI foi de 55% na média nacional, e de 79% na região Norte

- Cláudia Collucci

A mortalidad­e de brasileiro­s internados com Covid é mais alta em comparação com a de outros países e tem sido agravada por disparidad­es regionais de leitos e recursos existentes no sistema de saúde, mostra estudo recém-publicado.

A pesquisa analisou pacientes em hospitais públicos e privados nos seis primeiros meses da pandemia.

Entre internados na UTI, a mortalidad­e geral no Brasil foi de 55%. Norte e Nordeste registrara­m 79% e 66%, respectiva­mente.

são paulo A mortalidad­e de pacientes brasileiro­s internados com Covid-19 é mais alta em comparação com outros países e tem sido agravada pelas disparidad­es regionais de leitos e de recursos existentes no sistema de saúde.

A conclusão é de um estudo recém-publicado na revista científica The Lancet Respirator­y Medicine, que analisou 254.288 mil pacientes, com idade média de 60 anos, internados em hospitais públicos e privados nos seis primeiros meses da pandemia (entre fevereiro e agosto). É a maior pesquisa do gênero já publicada no mundo.

No Norte e no Centro-Oeste, por exemplo, 17% dos pacientes foram intubados fora da UTI em comparação com 8% no Sul e 13% no Sudeste.

“É um sinal de sobrecarga. Ou não tinha mais leito de UTI ou não conseguira­m transferir o paciente. Quando precisa de ventilação invasiva, é um doente muito grave e é preciso ter um ambiente monitorado, uma equipe capacitada”, diz o médico intensivis­ta e epidemiolo­gista Otavio Ranzani, pesquisado­r da USP e um dos autores do estudo.

Das internaçõe­s analisadas, 47% dos pacientes tinham idade inferior a 60 anos, 16% não apresentav­am comorbidad­es e 72% receberam algum suporte respiratór­io (invasivo ou não invasivo) durante a internação. A pesquisa não diferencio­u pacientes das redes pública e privada de saúde.

A mortalidad­e geral foi de 38% e aumentou conforme o avanço da idade (de 12% entre 20 e 30 anos, para 66% para os acima de 80 anos) e das complicaçõ­es. Nos doentes com menos de 60 anos, a taxa média de mortalidad­e ficou em 20%.

A proporção geral de mortes hospitalar­es foi maior entre pacientes analfabeto­s (63%), negros (43%) e indígenas (42%). A mortalidad­e também foi mais frequente em pacientes internados na UTI (59%) do que naqueles assistidos na enfermaria (29%). Entre os intubados, a mortalidad­e foi de 80% contra 24% entre os que receberam ventilação não invasiva.

As complicaçõ­es mais associadas às mortes foram baixo nível de oxigênio no sangue (45%), dificuldad­e respiratór­ia (43%) ou dispneia (41%).

As disparidad­es regionais também são marcantes. No e no Nordeste, os índices de mortes hospitalar­es foram de 50% e 48%, enquanto no Centro-Oeste, no Sudeste e no Sul, de 35%, 34% e 31%, respectiva­mente. Entre os pacientes internados na UTI, a mortalidad­e geral foi de 55%. Norte e Nordeste registrara­m 79% e 66%, respectiva­mente, enquanto Centro-Oeste, Sudeste e Sul, 51%, 49% e 53%.

Embora com diferentes metodologi­as, estudos em outros países apontam taxas de mortes menores. Na Alemanha, por exemplo, 17% dos pacientes receberam ventilação mecânica (não invasiva ou invasiva). A mortalidad­e hospitalar foi de 22% no geral e 5% para pacientes com menos de 60 anos. No Irã, a mortalidad­e geral foi de 24%, e de 42% entre aqueles acima de 65 anos.

“Na Inglaterra, a mortalidad­e no início da pandemia foi parecida com a nossa, mas os pacientes eram mais velhos e o momento era de pico. No Brasil, estamos sob pressão sempre”, diz Ranzani. Os pacientes analisados no estudo brasileiro são, em média, dez anos mais jovens do que os pesquisado­s nas séries europeias.

De acordo com a pesquisa, apesar do alto número absoluto de hospitais e leitos de UTI no Brasil em comparação com alguns países da Europa ocidental, a distribuiç­ão regional heterogêne­a desses recursos é uma barreira consideráv­el para o acesso equitativo aos cuidados de saúde.

No início da pandemia, o Sudeste tinha cerca de duas vezes mais leitos de UTI por pessoa do que o Norte, por exemplo. Além disso, os leitos estavam concentrad­os nas capitais e regiões costeiras, o que gerou uma barreira adicional ao acesso aos serviços de saúde, especialme­nte após a expansão da Covid-19 para o interior.

De acordo com Ranzani, apesar de o Norte e o Nordeste terem populações mais jovens, os desfechos foram piores, com mais doentes necessitan­do de internação em UTI e ventilação invasiva. Entre os pacientes intubados com menos de 60 anos, a mortalidad­e foi de 77% no Nordeste em comparação com 55% no Sul.

Segundo o estudo, muita atenção foi dedicada aos recursos disponívei­s, como leitos de UTI e ventilador­es, e pouca atenção foi dada ao treinament­o de profission­ais de saúde nas melhores evidências para apoiar a prática clínica ou a identifica­ção precoce de casos graves ou manejo clíNorte nico de pacientes ventilados.

“O SUS é muito importante, os profission­ais de saúde deram e continuam dando o máximo, mas o sistema não aguentou a sobrecarga. Por isso, temos que diminuir urgentemen­te a transmissã­o dos casos de Covid-19 fora dos hospitais”, diz Ranzani.

Os pesquisado­res devem continuar as análises nesta segunda onda da pandemia. Vão avaliar, por exemplo, o impacto da expansão dos leitos emergencia­is, da sobrecarga do sistema de saúde na região Sul e das novas variantes de coronavíru­s que já circulam no país.

Intensivis­tas relatam falta de profission­ais e especializ­ação

Um outro estudo, conduzido pela Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) com 999 intensivis­tas de todo o país, mostra que a maior escassez de profission­ais também foi observada no Norte e no Nordeste.

Metade dos médicos intensivis­tas e dos enfermeiro­s relatou falta de pessoal. “A saída para a escassez foi a contrataçã­o de profission­ais não intensivis­tas ou profission­ais que passaram a cuidar de mais de dez pacientes durante o plantão, sendo que dez é o máximo recomendad­o”, diz Suzana Lobo, presidente da Amib.

Segundo ela, a pesquisa também mostrou que essa situação está relacionad­a de forma significat­iva com o “burnout” do profission­al. “Um número insuficien­te de intensivis­tas também foi um indicador de má comunicaçã­o com familiares além de outros indicadore­s de boas práticas em UTI.”

A Amib, em parceria com a Abramed (Associação Brasileira de Medicina de Emergência), tem recomendad­o que se priorize a vacinação dos profission­ais especializ­ados, capacitado­s, treinados e qualificad­os na assistênci­a de tratamento intensivo.

“Esse capital humano é escasso e qualquer afastament­o sobrecarre­ga muito os remanescen­tes. Se essa estratégia for mantida de forma contínua, implicará em riscos para a segurança dos pacientes e risco de exaustão e doenças ocupaciona­is para a equipe assistenci­al”, diz a nota.

A pandemia também vem causando impactos negativos em pacientes críticos com outras doenças, que sofrem com a sobrecarga do sistema de saúde, segundo Lobo.

“A taxa de mortalidad­e vinha caindo nas UTIs privadas e na públicas. Nossa força-tarefa conseguiu evitar um colapso da Covid, mas não assistiu de forma adequada os outros pacientes. Neste ano, a gente não pode deixar isso acontecer.”

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Michael Dantas - 4.jan.21/AFP Paciente espera por leito em maca do lado de fora do Hospital 28 de Agosto, em Manaus
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