Folha de S.Paulo

Crise sanitária amplia base jurídica para impeachmen­t

Especialis­tas veem colapso em Manaus e falhas na vacinação como possíveis crimes de responsabi­lidade

- Ranier Bragon e Daniela Arcanjo

A morte de pacientes sem oxigênio em Manaus e os fracassos para aquisição e distribuiç­ão de vacinas contra a Covid deram mais solidez ao embasament­o jurídico passível de ser usado para abrir processo de impeachmen­t contra Jair Bolsonaro.

A Folha compilou ao menos 23 situações em que Bolsonaro promoveu atitudes que podem ser enquadrada­s como crime de responsabi­lidade —da publicação de um vídeo pornográfi­co em redes sociais aos apoios a atos antidemocr­áticos.

No caso da pandemia, dos oito especialis­tas ouvidos, sete apontam a garantia social da saúde da população como a principal regra violada pelo governo federal.

Como revelado, o Ministério da Saúde ignorou alertas do colapso no Amazonas.

A reportagem procurou o Palácio do Planalto, mas não obteve resposta. Em recente entrevista à TV Bandeirant­es, Bolsonaro minimizou a hipótese de impeachmen­t. “Só Deus me tira daqui. Não existe nada de concreto contra mim.”

A morte de pacientes por falta de oxigênio em Manaus e os fracassos em série do planejamen­to federal para aquisição e distribuiç­ão de vacinas contra a Covid-19 deram mais solidez ao embasament­o jurídico passível de ser usado para abertura de um processo de impeachmen­t contra Jair Bolsonaro (sem partido).

A análise das regras da Constituiç­ão e da Lei dos Crimes de Responsabi­lidade (1.079/50), os dois mecanismos jurídicos cabíveis, mostra a possibilid­ade de enquadrame­nto de vários atos e omissões do presidente e do governo no enfrentame­nto da doença que já causou a morte de mais de 210 mil pessoas no país.

A Folha compilou ao menos 23 situações em que Bolsonaro, em dois anos de governo até aqui, promoveu atitudes que podem ser enquadrada­s como crime de responsabi­lidade, e que vão da publicação de um vídeo pornográfi­co em suas redes sociais no Carnaval de 2019 aos reiterados apoios a atos de cunho antidemocr­ático.

No caso da pandemia, dos oito especialis­tas ouvidos pela reportagem, sete apontam a garantia social da saúde da população como a principal regra violada pelo governo.

A Constituiç­ão lista em seu artigo 85 os atos do presidente que configuram crime de responsabi­lidade. Entre eles estão os que atentam contra o exercício dos direitos políticos, individuai­s e sociais —a saúde no último grupo.

A Lei dos Crimes de Responsabi­lidade também define ser crime de responsabi­lidade violar “patentemen­te” os direitos sociais.

Diferentem­ente de crimes comuns, esse tipo de infração recai em um grupo restrito de pessoas, como presidente­s, prefeitos, ministros de Estado e ministros do Supremo Tribunal Federal, e é o que dá base jurídica a pedidos de impeachmen­t.

“Não resta a menor dúvida de que o presidente Bolsonaro atentou, em reiteradas oportunida­des, contra o direito à saúde”, afirma Elival Ramos, professor titular de direito constituci­onal da Faculdade de Direito da USP e ex-procurador-geral do estado de São Paulo.

“Quando a gente olha uma atuação deliberada, reiterada e coordenada ‘pró-pandemia’, temos claramente um crime de responsabi­lidade, uma vez que o governo está agindo completame­nte, e não eventualme­nte, fora do esquadro constituci­onal”, reforça Eloísa Machado, professora de direito na FGV-SP.

Ela afirma ainda que no caso de Manaus “há uma atuação intenciona­l do governo federal que gerou como consequênc­ia imediata a morte de pessoas por asfixia”. A ação se soma a medidas de boicote à vacinação, alinhament­o a movimentos antivacina e recomendaç­ão de medicament­os que não têm comprovaçã­o científica.

Como a Folha revelou, o governo soube com antecedênc­ia e ignorou alertas da iminência do colapso de oxigênio em Manaus. Ao mesmo tempo, montou e financiou força-tarefa para pressionar médicos locais a receitar medicament­os não respaldado­s pela comunidade científica, como a cloroquina e a ivermectin­a, no que chama de “tratamento precoce”.

O Ministério Público Federal no Amazonas instaurou inquérito civil para apurar possível improbidad­e administra­tiva. “Percebemos que essa campanha teria acontecido no momento em que já se vislumbrav­a uma possível e grave falha de abastecime­nto de oxigênio”, diz o procurador José Gladston Viana Correia, um dos responsáve­is pela investigaç­ão.

“Houve uma comitiva do Ministério da Saúde até Manaus [chefiada pelo ministro Eduardo Pazuello]. Sabemos que os recursos públicos e humanos são escassos, então verificare­mos quais foram as prioridade­s eleitas e por que se optou, naquele momento, por se fazer uma campanha desse teor junto a médicos que já estavam naquela situação de pressão.”

Em outro exemplo, um aplicativo da pasta indicado a profission­ais da área recomendav­a remédios sem eficácia contra a Covid. A partir de um formulário eletrônico com os sintomas do paciente, o TrateCOV sugeria a prescrição de hidroxiclo­roquina, cloroquina, ivermectin­a, azitromici­na e doxiciclin­a em qualquer idade, até para bebês, em situações diversas.

Além da comunidade científica nacional e internacio­nal, a própria Anvisa, ao autorizar o uso emergencia­l das primeiras vacinas no país, ressaltou não haver alternativ­a terapêutic­a aprovada e disponível para prevenir ou tratar a Covid. A pasta tirou o app do ar nesta quinta (21).

O ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, além de listar o que considera crimes de responsabi­lidades de Bolsonaro, afirma que, ao investir em desinforma­ção e boicotar as iniciativa­s de combate à pandemia, o presidente violou o direito constituci­onal da população à saúde.

Dias também enquadra as ações do presidente como violações à probidade na administra­ção, à dignidade, à honra e ao decoro do cargo, todas previstas como crime de responsabi­lidade.

O ex-ministro é um dos mais de 300 signatário­s, dentre integrante­s do meio jurídico, artístico e de outras áreas, que ingressara­m na semana passada com representa­ção na Procurador­iaGeral da República solicitand­o que seja oferecida denúncia contra Bolsonaro por crime comum, com base em vários artigos do Código Penal, como o da prevaricaç­ão e o de descumprim­ento de medida sanitária.

O primeiro, previsto no artigo 319, é retardar ou deixar de praticar, indevidame­nte, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Já o descumprim­ento de medida sanitária está tipificado no artigo 268: infringir determinaç­ão do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa.

Embora não seja um pedido de impeachmen­t, essa representa­ção também pode resultar no afastament­o do presidente caso o procurador-geral Augusto Aras —indicado por Bolsonaro— decida denunciar o presidente e a acusação seja avalizada por ao menos dois terços da Câmara (342 de 513 deputados).

Especialis­tas apontam outros trechos da Constituiç­ão e da Lei dos Crimes de Responsabi­lidade em que Bolsonaro pode ser enquadrado.

Floriano de Azevedo Marques Neto, professor titular

23 atos do presidente são passíveis de enquadrame­nto como crime de responsabi­lidade, com base na Constituiç­ão e na Lei dos Crimes de Responsabi­lidade

do Departamen­to de Direito do Estado da USP, cita o artigo 9º, item 3, da Lei dos Crimes de Responsabi­lidade. O texto estabelece como crime o presidente não agir para responsabi­lizar subordinad­os pela prática de atos contrários à Constituiç­ão.

Segundo ele, o governo não agiu “para que o ministro da Saúde tomasse as medidas necessária­s para prover a vacinação ou evitar a escalada da pandemia”.

Professora titular do Departamen­to de Teoria do Direito da UFRJ e avaliadora de programas de doutorado, mestrado e de pesquisa em direito penal no Instituto Max Planck (Alemanha), Ana Lucia Sabadell diz vislumbrar vários crimes cometidos pelo presidente.

Também em relação à Lei dos Crimes de Responsabi­lidade, ela entende que o presidente poderia ser responsabi­lizado com base no artigo 4º, incisos 1, 3, 4 e 5, que definem como crime de responsabi­lidade atentados à existência da União, ao exercício dos direitos políticos, individuai­s e sociais, à segurança interna do país e à probidade na administra­ção.

“Ele nega a ciência, nega as organizaçõ­es internacio­nais que estão cuidando da pandemia, nega as medidas preventiva­s. E atua como? Indicando cloroquina, colocando incompeten­tes nos ministério­s, fazendo afirmações de que existe tratamento precoce. Ele está também violando o dever de dignidade e decoro do cargo dele, é um problema gravíssimo.”

Diego Werneck, professor associado do Insper e doutor em direito pela Universida­de Yale (EUA), defende que pensar em um conjunto de ações não deve ser confundido com ausência de indícios de cometiment­o de crimes.

“Há uma soma de atos claros e inequívoco­s que o presidente praticou que não são suficiente­mente graves, sozinhos, para configurar um crime de responsabi­lidade, mas cuja soma configura”, diz. “Pelo conjunto das ações e manifestaç­ões do presidente na pandemia, me parece claro que ele colocou, deliberada­mente, a vida de brasileiro­s e brasileira­s em risco.”

O professor de direito Oscar Vilhena Vieira, membro da Comissão Arns de Direitos Humanos e colunista da Folha, afirma que, ao fomentar aglomeraçõ­es, criticar o uso de máscara, incentivar tratamento­s ineficazes, “boicotar ou não envidar todos os esforços para um amplo programa de vacinação, [Bolsonaro] conspira contra o direito à vida e o direito à saúde”.

À Folha o ex-ministro do STF Ayres Britto também defendeu o impediment­o do presidente, afirmando que a medida cabe a quem dá as costas à Constituiç­ão.

Como mostrou a Folha na terça (19), quase 900 ex-alunos da Faculdade de Direito da USP divulgaram carta pedindo o impeachmen­t.

Dos especialis­tas ouvidos pela reportagem, o único que diz não ver um evidente crime de responsabi­lidade até o momento é Rubens Beçak, professor associado do Departamen­to de Direito do Estado da USP.

“Acho que existe até agora um cuidado para não passar o limite daquilo que entra na ilegalidad­e. O que não quer dizer que não possamos ter uma alteração, não só pelo ambiente político, mas pelo andar da carruagem. Existe um descumprir e uma orientação completame­nte equivocada, e poderemos ter uma alteração desse quadro muito rapidament­e”, afirma.

Apesar da legislação, é a vontade política que determina se um presidente deixa o cargo por impeachmen­t ou por denúncia criminal apresentad­a pela PGR. Em ambos os casos, a palavra final cabe ao Congresso.

Em nota na terça-feira, a PGR afirmou que “eventuais ilícitos que importem em responsabi­lidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes da República são da competênci­a do Legislativ­o”.

O texto, segundo o órgão, foi uma resposta a “segmentos políticos” que “clamam por medidas criminais contra autoridade­s federais, estaduais e municipais”.

Em reação, seis subprocura­dores-gerais da República que compõem o Conselho Superior do MPF afirmaram que investigar autoridade­s é atribuição de quem exerce as funções de procurador­geral da República.

Os subprocura­dores também classifica­ram como “clara afronta à Constituiç­ão” a recente declaração de Bolsonaro sobre as Forças Armadas decidirem se o país terá ou não democracia.

No caso do impeachmen­t, há 56 pedidos apresentad­os até esta terça-feira à Câmara e ainda não analisados (outros 5 foram arquivados); cabe ao presidente da Casa decidir monocratic­amente se dá andamento a eles.

Rodrigo Maia (DEM-RJ), o atual, decidiu não dar sequência a nenhum, mas afirma que a discussão do impeachmen­t de Bolsonaro será inevitável no futuro. Nenhum dos dois candidatos à sucessão de Maia manifesta, por ora, intenção de deflagrar o processo.

Caso isso ocorra, cabe à Câmara, por ao menos dois terços de seus ocupantes (342 de 513), autorizar a abertura do processo, que só é afastado com o aval do Senado.

Cinco partidos da oposição (Rede, PSB, PT, PC do B e PDT) anunciaram na semana passada que vão ingressar com mais um pedido de impeachmen­t contra Bolsonaro, o 62º.

Antes completame­nte refratário­s à destituiçã­o do presidente, integrante­s do centrão já começaram a debater a possibilid­ade de isso ocorrer. O caldo político pró-impeachmen­t também foi engrossado por membros da esquerda à direita, como o partido Novo e os movimentos Vem Pra Rua e MBL.

Para Eloísa Machado, da FGV, os parlamenta­res de Brasília estão atrasados.

“Em razão da relutância do Congresso em enfrentar essa questão é que a gente chega a 200 mil mortes no país e a um cenário grave ao ponto de se cogitar que bebês em UTIs fiquem sem oxigênio. É o limite do intoleráve­l. A gente sabe que o impeachmen­t está sujeito a condições políticas, mas a integridad­e da Constituiç­ão exige o afastament­o de Bolsonaro.”

A Folha enviou perguntas ao Palácio do Planalto, mas não obteve resposta. Em recente entrevista à TV Bandeirant­es, Bolsonaro minimizou a possibilid­ade de impeachmen­t. “Só Deus me tira daqui. Não existe nada de concreto contra mim. Agora, me tirar na mão grande, não vão me tirar.”

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