Folha de S.Paulo

Ao valorizar hit antigo, streaming faz da venda de direitos negócio lucrativo

Poder do streaming, que valoriza sucessos antigos, fez da liquidação de direitos autorais um negócio muito lucrativo

- Lucas Brêda

“Só Hoje”, do Jota Quest, foi uma das 150 músicas que mais arrecadara­m direitos autorais vindos do Spotify nos últimos três anos. A faixa saiu em 2002 e, mesmo sem ser relançada, passou a rende rum dinheiro extra para abanda mineira, agora que o streaming vem se estabelece­ndo como a principal via para consumo de música no mundo.

Esse movimento, de músicas antigas que são tão ouvidas quanto as atuais, tem impulsiona­do uma nova tendência entre compositor­es de hits —a venda dos próprios catálogos, ou valores a que têm direito a receber por sua autoria. Nos últimos meses, uma série de artistas ao redor do mundo anunciaram que concederam parte ou a totalidade do copyright de suas músicas para empresas.

Bob Dylan vendeu todas as suas mais de 600 canções para a Universal, a maior gravadora do mundo, por cerca de US$ 300 milhões, ou R$ 1,5 bilhão. Este é possivelme­nte o acordo de direitos autorais mais lucrativo da história.

Masa maioria das grandes negociaçõe­s recentes envolvem a empresa de investimen­tos britânica Hipgnosis, que já gastou quase US$ 1 bilhão comprando os direitos de mais de 13 mil canções, de Beyoncé a Blondie. Foi a Hipgnosis que comprou metade do catálogo de Neil Young e há pouco também fez negócios com o renomado produtor Jimmy Iovine, além de Shakira e de três integrante­s do Fleetwood Mac.

Merck Mercuriadi­s, que foi empresário de Beyoncé e Elton John, é quem está por trás da Hipgnosis. “Certas canções são previsívei­s e confiáveis no que diz respeito à quantidade de plays que elas recebem”, ele disse ao jornal The Guardian. “Quando digo que é melhor do que ouro ou petróleo, é porque não tem relação com o que ocorre no mercado.”

Músicas conhecidas podem gerar receitas por décadas, agora que continuarã­o tocando no streaming, além do uso em comerciais e filmes e de tocar no rádio e nos shows. Essa previsibil­idade torna o investimen­to atraente, diz Arthur Farache, CEO da Hurst Capital, plataforma de investimen­tos em ativos alternativ­os.

“É um negócio resiliente. Arrecadaçã­o depende de quantas vezes a música é ouvida. Isso não depende da Bolsa. Se tiver um problema, aumentar ou baixara taxa de juros, ou oTrumpb rigando coma China, não interessa. As pessoas continuam ouvindo música.”

Além disso, diz Farache, o sistema de arrecadaçã­o de direitos no Brasil é “um dos mais avançados do mundo”.

A ideia de negociar direitos não é nova. Nos anos 1990, David Bowie já havia vendido os lucros de parte do seu catálogo a investidor­es. Masa principal razão da valorizaçã­o desse tipo d ene gó cioéostre ami ng, que fez o valor de mercado da música gravada disparar.

“As plataforma­s fizeram com que a música gravada voltasse a render dinheiro ”, diz F arache. “E hoje ela depende muito menos das grandes gravadoras. Você consegue ter um pequeno selo ou ser um artista independen­te e distribuir o conteúdo. A tendência do streaming é crescer oito vezes até 2040.”

AH urst começou afazer operações envolvendo direitos de músicas em 2019. Já comprou a obra de gente como Paulo Ricardo, autor de diversos hits dos anos 1980 com o RPM, e Philipe Pancadinha, compositor de sucessos contemporâ­neos, como “Largado às Traças” e “Bebi Liguei”.

“Uma venda de catálogo, como qualquer negócio, pode ser lucrativa ou não, depende dos termos e condições. É uma resposta particular para cada compositor, mas minha recomendaç­ão é que busquem profission­ais com experiênci­a nesse mercado”, ele diz.

Pancadinha considera que mesmo autores que não têm hits no currículo podem fazer acordos de cessão de direitos, mas é necessário não sair em desvantage­m numa negociação. “É importante o compositor saber avaliar qual parte de suas músicas deseja negociar a cada momento.”

Essas firmas compram os direitos da obra —a composição— e do fonograma —a música gravada— por certo tempo. As canções rendem quando tocadas no streaming, em shows, rádio e TV, e o dinheiro é distribuíd­o pelo Ecad, órgão de arrecadaçã­o no país.

Os sócios que investem na Hurst podem ter um retorno líquido de até 15% ao ano, diz a empresa. Já o artista recebe adiantamen­tos, que podem ser revertidos em investimen­to na própria carreira.

O direito sobre a obra, que é intransfer­ível, permite aos compositor­es continuare­m tendo decisão sobre como essas obras serão usadas.

Assim, essas empresas funcionam quase como gravadoras, já que têm interesse em investir em marketing, organizar catálogos e fazer com que continuem rendendo. “É um trabalho de sócio, trazendo coisas que vão ajudara aumentara arrecadaçã­o, sem se meter na parte artística”, diz Farache.

Um levantamen­to do Ecad mostra que, só no Spotify, diversas músicas antigas estão entre as que mais renderam direitos. “Sweet Child O’ Mine”, hit de 1987 do Guns N’ Roses, e “Irreplacea­ble”, que Beyoncé lançou em 2009, são exemplos. No Brasil, além do Jota Quest, a lista está cheia de canções de Legião Urbana e Charlie Brown Jr., bandas que já não existem.

Farache, da Hurst, entretanto, diz que “não se trata de uma corrida de cem metros, é uma construção”. Ou seja, os acordos não são certeza de lucros maiores e exigem trabalho a longo prazo dos artistas.

“A primeira operação não é tão barata, mas, quando o artista cria um público de investidor­es —que podem ou não ser fãs—, elas ficam bem mais baratas. O artista trabalha o catálogo, gravando um ‘acústico’ ou saindo em turnê. Esses são projetos que agente consegue financiar. Assim, eles constroem um público.”

 ?? Ilustração Edson Sales ?? Bob Dylan, Shakira e Neil Young, alguns dos astros da música que venderam os direitos autorais sobre os seus catálogos de canções
Ilustração Edson Sales Bob Dylan, Shakira e Neil Young, alguns dos astros da música que venderam os direitos autorais sobre os seus catálogos de canções

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil