Folha de S.Paulo

Carta lida às gargalhada­s

- Ruy Castro

Lisboa, no verão de 1975, devia ser a cidade mais excitante do mundo para um jornalista. Era o auge da Revolução dos Cravos, que, no ano anterior, derrubara uma ditadura de 48 anos. O governo do premiê Vasco Gonçalves, na prática comunista, estava sendo pressionad­o pela extrema esquerda a radicaliza­r e, com isso, deu-se um festival de tomada de empresas, ocupação de fábricas e nacionaliz­ação dos bancos. Dizia-se que Portugal sairia da Otan (Organizaçã­o do Tratado do Atlântico Norte), liderada pelos EUA, e se juntaria ao Pacto de Varsóvia, dominado pela URSS.

Morando e trabalhand­o lá, fui ao Pabe, botequim dos correspond­entes estrangeir­os, encontrar um bem informado repórter americano. “Os russos não têm interesse em Portugal”, ele disse. “Imagine um país comunista na Europa, de porta para o Atlântico! Isso só lhes traria problemas com os EUA. O que eles querem é Angola”. Referia-se à ainda colônia portuguesa, às vésperas da independên­cia depois de longa guerra contra a metrópole recém-encerrada pelo governo Vasco. “Assim que Angola ficar formalment­e livre, os russos irão em busca de seu petróleo e deixarão Portugal falando sozinho”, completou.

No dia 11 de novembro, Portugal e os grupos de guerrilha assinaram a independên­cia de Angola, e o MPLA (Movimento pela Libertação de Angola, pró-URSS) tomou o poder. Duas semanas depois, no dia 25, um golpe liquidou a Revolução dos Cravos. O repórter sabia o que dizia. Claro, seu informante era a CIA.

Se os americanos sabem até o que vai acontecer, imagine como não são seus arquivos. De Jair Bolsonaro, por exemplo, eles têm cada trumpismo, por mais ínfimo. De Ernesto Araújo, ministro do Exterior, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente, cada ato público ou secreto, legal ou ilegal —e tudo em assuntos de seu interesse.

Em Washington, a carta de Bolsonaro ao presidente Joe Biden foi lida às gargalhada­s.

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