Confusão com filas revela falta de cidadania e de plano federal
Casos desta semana mostram que não é o interesse público que prevalece
O início da primeira fase da campanha de vacinação contra a Covid-19 já está sendo marcado por denúncias de desvios pelo país e de imunização de pessoas que não fazem parte dos grupos prioritários.
Embora o PNI (Programa Nacional de Vacinação) tenha definido prioridade para médicos, pessoal da enfermagem e outras categorias da saúde, além de indígenas e idosos em casas de repouso, estados e municípios ficaram responsáveis por montarem seus planos.
Para relembrar, há casos sendo investigados em seis estados do Nordeste (Bahia, Pernambuco, Sergipe, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.
Em Manaus (AM), foi aberta uma investigação após duas irmãs médicas de uma família que comanda uma das maiores universidades privadas do Amazonas publicarem fotos comemorando a vacinação
No Distrito Federal, o Ministério Público apura denúncia de que algumas pessoas que não fazem parte dos
grupos prioritários estariam furando a fila da vacinação e cobrou explicações para a secretaria de Saúde. O caso ocorreu após servidores administrativos publicarem fotos nas suas redes sociais recebendo a vacina.
Em São Paulo, a polêmica gira em torno da vacinação no Hospital das Clínicas de SP e na USP, que estão vacinando
profissionais que estão atuando em home office ou que trabalham em áreas que não são consideradas de risco.
Toda essa confusão reflete, além da falta de cidadania, uma ausência de planejamento e de coordenação federal, que deveria ter estabelecido os detalhes dos grupos prioritários e a estratégia da vacinação para os estados e
os municípios.
É sabido que municípios são mais vulneráveis às pressões políticas e econômicas locais. Além disso, muitos deles ainda estão com novas gestões.
Na falta de doses suficientes da vacina para todos, os exemplos vistos nesta semana demonstram que outros interesses, que não o público e o sanitário, podem prevalecer. É preciso uma vigilância atenta e punição.
A adoção de diferentes cronogramas e grupos prioritários gera iniquidades, inclusive, entre os próprios profissionais de saúde.
São mais de 5 milhões de trabalhadores da área no país, de acordo com análise feita pela USP e divulgada na última segunda (18). E, na ausência de uma diretriz nacional clara, cada município tem decidido quais deles devem receber a vacina primeiro.
O plano de São Paulo, por exemplo, estabeleceu a imunização prioritária de médicos, enfermagem, fisioterapeutas das UTIs e das enfermarias que atendem pacientes e dos prontos-socorros que recebem doentes com sintomas respiratórios. Estão incluídos também profissionais da linha de frente das UPAs, UBSs e do Samu.
Já o Rio de Janeiro, decidiu priorizar os profissionais de saúde que estão afastados por serem de grupos de risco (por condição de saúde ou por ser maiores de 60 anos), que atuem em CTIs, urgência e emergência, e nas unidades básicas de saúde que farão parte da campanha de vacinação contra a Covid.
Até aí são escolhas técnicas, justificáveis. O problema é mais embaixo: faz algum sentido médicos do HC que estão atendendo em home office ou professores da USP que se dedicam ao ensino ou à pesquisa serem vacinados antes de profissionais que estão na lida diária de hospitais e unidades de saúde?
Questionada sobre esses fatos, a Faculdade de Medicina
da USP respondeu apenas que o “critério estabelecido é preconizado pela Secretaria da Saúde e pelo Ministério da Saúde”.
No Reino Unido e nos Estados Unidos, por exemplo, foram priorizados trabalhadores da saúde que se encaixam em pelo menos um de três critérios: maior grau de exposição ocupacional, maior risco de transmissão a pacientes ou colegas de trabalho e nível de risco individual para desenvolver a Covid-19 com gravidade.
A falta de coordenação nacional também pode trazer outras implicações. Em muitos locais, a segunda dose da vacina não está sequer garantida. Muitos dos que foram vacinados nesta semana dizem que não receberam orientação a respeito de quando devem retornar para tomar a segunda dose.
Tampouco está claro ou foi informado como acontecerá a farmacovigilância dessa imunização de uso emergencial.
Essa avaliação é fundamental não só para garantir a eficácia e a segurança da vacina como também para saber como lidar com eventuais problemas que podem ocorrer depois da vacinação, mas que não estão diretamente relacionados com ela.
Com um Ministério da Saúde militarizado e submisso às insanidades do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), contrário à ciência, o Brasil reúne inúmeros desacertos no enfrentamento da pandemia que já matou mais de 212 mil pessoas. É urgente que as lideranças nacionais evitem que a vacinação se transforme em mais um deles.