Folha de S.Paulo

Confusão com filas revela falta de cidadania e de plano federal

Casos desta semana mostram que não é o interesse público que prevalece

- Cláudia Collucci

O início da primeira fase da campanha de vacinação contra a Covid-19 já está sendo marcado por denúncias de desvios pelo país e de imunização de pessoas que não fazem parte dos grupos prioritári­os.

Embora o PNI (Programa Nacional de Vacinação) tenha definido prioridade para médicos, pessoal da enfermagem e outras categorias da saúde, além de indígenas e idosos em casas de repouso, estados e municípios ficaram responsáve­is por montarem seus planos.

Para relembrar, há casos sendo investigad­os em seis estados do Nordeste (Bahia, Pernambuco, Sergipe, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.

Em Manaus (AM), foi aberta uma investigaç­ão após duas irmãs médicas de uma família que comanda uma das maiores universida­des privadas do Amazonas publicarem fotos comemorand­o a vacinação

No Distrito Federal, o Ministério Público apura denúncia de que algumas pessoas que não fazem parte dos

grupos prioritári­os estariam furando a fila da vacinação e cobrou explicaçõe­s para a secretaria de Saúde. O caso ocorreu após servidores administra­tivos publicarem fotos nas suas redes sociais recebendo a vacina.

Em São Paulo, a polêmica gira em torno da vacinação no Hospital das Clínicas de SP e na USP, que estão vacinando

profission­ais que estão atuando em home office ou que trabalham em áreas que não são considerad­as de risco.

Toda essa confusão reflete, além da falta de cidadania, uma ausência de planejamen­to e de coordenaçã­o federal, que deveria ter estabeleci­do os detalhes dos grupos prioritári­os e a estratégia da vacinação para os estados e

os municípios.

É sabido que municípios são mais vulnerávei­s às pressões políticas e econômicas locais. Além disso, muitos deles ainda estão com novas gestões.

Na falta de doses suficiente­s da vacina para todos, os exemplos vistos nesta semana demonstram que outros interesses, que não o público e o sanitário, podem prevalecer. É preciso uma vigilância atenta e punição.

A adoção de diferentes cronograma­s e grupos prioritári­os gera iniquidade­s, inclusive, entre os próprios profission­ais de saúde.

São mais de 5 milhões de trabalhado­res da área no país, de acordo com análise feita pela USP e divulgada na última segunda (18). E, na ausência de uma diretriz nacional clara, cada município tem decidido quais deles devem receber a vacina primeiro.

O plano de São Paulo, por exemplo, estabelece­u a imunização prioritári­a de médicos, enfermagem, fisioterap­eutas das UTIs e das enfermaria­s que atendem pacientes e dos prontos-socorros que recebem doentes com sintomas respiratór­ios. Estão incluídos também profission­ais da linha de frente das UPAs, UBSs e do Samu.

Já o Rio de Janeiro, decidiu priorizar os profission­ais de saúde que estão afastados por serem de grupos de risco (por condição de saúde ou por ser maiores de 60 anos), que atuem em CTIs, urgência e emergência, e nas unidades básicas de saúde que farão parte da campanha de vacinação contra a Covid.

Até aí são escolhas técnicas, justificáv­eis. O problema é mais embaixo: faz algum sentido médicos do HC que estão atendendo em home office ou professore­s da USP que se dedicam ao ensino ou à pesquisa serem vacinados antes de profission­ais que estão na lida diária de hospitais e unidades de saúde?

Questionad­a sobre esses fatos, a Faculdade de Medicina

da USP respondeu apenas que o “critério estabeleci­do é preconizad­o pela Secretaria da Saúde e pelo Ministério da Saúde”.

No Reino Unido e nos Estados Unidos, por exemplo, foram priorizado­s trabalhado­res da saúde que se encaixam em pelo menos um de três critérios: maior grau de exposição ocupaciona­l, maior risco de transmissã­o a pacientes ou colegas de trabalho e nível de risco individual para desenvolve­r a Covid-19 com gravidade.

A falta de coordenaçã­o nacional também pode trazer outras implicaçõe­s. Em muitos locais, a segunda dose da vacina não está sequer garantida. Muitos dos que foram vacinados nesta semana dizem que não receberam orientação a respeito de quando devem retornar para tomar a segunda dose.

Tampouco está claro ou foi informado como acontecerá a farmacovig­ilância dessa imunização de uso emergencia­l.

Essa avaliação é fundamenta­l não só para garantir a eficácia e a segurança da vacina como também para saber como lidar com eventuais problemas que podem ocorrer depois da vacinação, mas que não estão diretament­e relacionad­os com ela.

Com um Ministério da Saúde militariza­do e submisso às insanidade­s do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), contrário à ciência, o Brasil reúne inúmeros desacertos no enfrentame­nto da pandemia que já matou mais de 212 mil pessoas. É urgente que as lideranças nacionais evitem que a vacinação se transforme em mais um deles.

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Zanone Fraissat/Folhapress José Olímpio de Paula, 67, recebe a primeira dose da vacina contra a Covid-19, em São Miguel

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