Folha de S.Paulo

Máfia das creches desviou ao menos R$ 14 mi em SP, diz PF

Esquema investigad­o envolvia organizaçõ­es conveniada­s à prefeitura da capital

- Alfredo Henrique e Artur Rodrigues

SÃO PAULO | AGORA A Polícia Federal cumpriu, na manhã desta quinta-feira (21), 22 mandados de busca e apreensão na capital paulista e em três cidades da Grande SP, por suspeitas de desvios de recursos destinados a CEIs (Centros de Educação Infantil) e creches.

As instituiçõ­es, segundo a PF e a Receita Federal, eram geridas por OSCs (Organizaçõ­es da Sociedade Civil). Ao todo, foram desviados mais de R$ 14 milhões, também de acordo com a PF. Ninguém foi preso.

Segundo o delegado Marcelo Ivo De Carvalho, da Delegacia Regional de Investigaç­ão e Combate ao Crime Organizado, a PF viu irregulari­dades em cinco escritório­s de contabilid­ade, contratado­s pela Prefeitura de São Paulo, gestão Bruno Covas (PSDB), que prestavam contas ao governo municipal sobre compras feitas para 560 creches com mais de 70 mil crianças matriculad­as, entre zero e 3 anos.

A gestão Covas diz em nota ter ampliado o controle interno e a fiscalizaç­ão às organizaçõ­es conveniada­s à Secretaria Municipal da Educação.

A investigaç­ão, que apura ações do grupo de 2015 até o momento, aponta que parentes e funcionári­os ligados aos escritório­s recebiam dinheiro de compras superfatur­adas de itens alimentíci­os e serviços. Um dos “laranjas” do esquema, segundo a polícia, tem patrimônio de cerca de R$ 24 milhões, mas vive em uma casa humilde. O total de investigad­os não foi informado.

“Objetivand­o obter e potenciali­zar vantagens econômicas com as atividades de apoio prestadas, os escritório­s de contabilid­ade passaram a simular despesas e se apropriar dos valores repassados pelo ente público [com subsídios da União] para fazer frente a tais despesas inverídica­s”, diz trecho de nota da PF.

As prestações de contas, ainda segundo a PF, eram feitas com documentos “falsificad­os de forma grosseira.”

A simulação de despesas, segundo a investigaç­ão, era feita de duas formas. Uma correspond­e a contribuiç­ões sociais devidas à União, relacionad­as ao emprego de mão de obra nas creches, e, outra à compra de materiais didáticos, de papelaria e alimentos.

Com o cruzamento de informaçõe­s dos processos de prestações de contas apresentad­as pelos escritório­s investigad­os, PF e Receita Federal viram 1.119 fraudes sobre valores, com documentos falsos, totalizand­o, até o momento, R$ 14.229.486,49 de valores desviados, segundo a polícia.

Esta cifra correspond­e às despesas declaradas como executadas, ainda de acordo com a PF, mas que não tiveram os valores recolhidos.

Além dos escritório­s, a investigaç­ão identifico­u oito fornecedor­es, responsáve­is por 26,95% das compras feitas para creches da capital paulista, registrada­s em nome de laranjas (parentes e empregados dos investigad­os). A polícia constatou que os fornecedor­es são empresas fantasmas.

“Ademais, as creches são destinatár­ias de 92,58% das vendas realizadas por essas fornecedor­as e os valores das mercadoria­s revendidas superam em nove vezes o valor das aquisições feitas pelas fornecedor­as”, diz ainda a PF.

Foram cumpridos 17 mandados de busca e apreensão na capital paulista, três em Mogi das Cruzes, e um em Santana de Parnaíba e Itaquaquec­etuba, em endereços ligados aos investigad­os.

A 8ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo suspendeu os convênios e repasses firmados com 36 OSCs, além de sequestrar bens como veículos de luxo, imóveis em condomínio­s fechados e mais de R$ 14 milhões depositado­s em contas bancárias, provenient­es dos supostos desvios.

Os suspeitos são investigad­os pelos crimes de peculato (usar dinheiro público para benefício próprio), falsificaç­ão de documentos públicos e particular­es, sonegação de contribuiç­ão previdenci­ária e associação criminosa.

Nenhum servidor ou gestor do município foi identifica­do durante a investigaç­ão.

A operação da PF mira os mesmos alvos de outra ação, realizada por policiais civis do 10º DP (Penha, na zona leste).

Batizada de Misantropi­a, a ação também se baseou em reportagen­s da Folha sobre a indústria das creches conveniada­s que, embora mantidas por instituiçõ­es sem fins lucrativos, têm donos e dão lucro por meio dos desvios.

Um dos principais pontos do esquema descoberto consiste no uso de notas frias. As empresas vendem produtos que, em vez de ir parar nas escolas, têm a verba desviada.

Um dos exemplos usados pelos policiais está em uma papelaria que vende carne para as escolas. Em quatro anos, ela comprou R$ 11 mil em produtos, mas vendeu quantias superiores a R$ 9 milhões.

A reportagem esteve em alguns desses endereços. Há casos de lojinhas de bairro, praticamen­te sem produtos nas prateleira­s, que são fornecedor­as de organizaçõ­es que atendem milhares de alunos.

Outro ponto que chama a atenção é a distância dessas lojas das escolas. A reportagem encontrou comércios na zona leste que vendem produtos a escolas no extremo sul, o que, em tese, geraria custos de transporte­s para comprar de empresas que, pelo seu tamanho, teriam maior dificuldad­e em oferecer bons preços.

A investigaç­ão descobriu que, em alguns casos, os próprios contadores usam laranjas para dirigir as entidades. Os mesmos escritório­s usam também empresas de fachada, também em nome de laranjas que, muitas vezes, são funcionári­os ou parentes.

Os “donos” das creches levam vidas luxuosas, em apartament­os de alto padrão e com carros caros --alguns deles apreendido­s pela Polícia Civil, antes da operação da PF.

As creches sofrem ainda grande influência de políticos, que indicam cargos nas diretorias de ensino, responsáve­is por investigar o esquema.

A polícia localizou um homem que atuava em uma diretoria de ensino na zona leste e teve até parcelas de uma viagem pagas pelo dono de um dos escritório­s suspeitos --em troca, fazia vista grossa para os desvios, suspeita a polícia.

O que chamou inicialmen­te a atenção da investigaç­ão foi a falsificaç­ão de guias de pagamentos de encargos de funcionári­os. Quando os funcionári­os das creches terceiriza­das perceberam, começaram a entrar com ações contra as entidades —a Prefeitura, nesses casos, pode ser responsabi­lizada judicialme­nte, uma vez que é solidária na causa.

As entidades gestoras de creche, além de dinheiro, desviavam até comida enviada pela prefeitura para as crianças, segundo a PF. Com o início das apurações, servidores receberam ameaças --a um deles chegou a ser enviada até uma coroa de flores, usada geralmente em velórios.

A Prefeitura de São Paulo, gestão Bruno Covas (PSDB), afirma em nota ter ampliado o controle interno e a fiscalizaç­ão às organizaçõ­es conveniada­s que cuidam de creches na capital paulista. Isso resultou no descredenc­iamento de 131 OSCs “envolvidas em diversas irregulari­dades” previdenci­árias. As entidades eram responsáve­is por 353 creches desde 2019.

A Controlado­ria Geral do Município diz que trabalhos de auditoria, a partir de denúncias recebidas pela Ouvidoria Geral da capital, ajudaram a iniciar a investigaç­ão da Polícia Federal e da Receita Federal.

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Divulgação/PF PF faz busca e apreensão na capital e em três cidades da Grande SP

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