Folha de S.Paulo

Todos no mesmo barco?

O país que mais mata o povo preto não nos permite ser ingênuos

- Djamila Ribeiro Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenado­ra da coleção de livros Feminismos Plurais

Esta coluna, em especial, quem escreve a meu convite é Sarah Coly, advogada mestranda em direito do trabalho e integrante da Lado, um grupo de juristas importante na denúncia de precarizaç­ões sociais pelas quais o país enveredou.

Neste texto, Coly denuncia a falácia de “estarmos no mesmo barco” na pandemia, um lema irreal ante as desigualda­des materiais que se manifestam à nossa volta. Leia na íntegra.

Como reflexo de uma sociedade forjada sob a cegueira do mito da democracia racial, o slogan midiático do início da pandemia era o de que estaríamos todos no mesmo barco.

Postagens enalteciam a fala de que o vírus não faria distinção, alcançando a todos de forma igualitári­a, sem as assimetria­s impostas pelas desigualda­des sociais, raciais e de gênero em nossa sociedade. A tentativa era de despigment­ar os efeitos da pandemia, trazendo à lembrança as palavras de Eliana Alves Cruz, em “Água de Barrela”: “O que se queria mesmo era que tudo fosse mergulhado nessa água que branqueia”.

A realidade, contudo, como sempre implacável, não obedece a fake news ou tendências de solidaried­ade “instagramá­vel”.

A estrutura estatal e institucio­nal hegemônica alcança suas vítimas premeditad­as e, não por acaso, o primeiro corpo atingido pela Covid-19 no país foi o de uma trabalhado­ra doméstica de 63 anos, infectada por sua empregador­a, no local de trabalho, sem que a ela tenham sido assegurada­s proteções básicas para desempenho de seu trabalho.

Em um contexto em que alguns cogitam que a Terra pode ser plana e que cloroquina seria a cura, é necessário pequeno desvio para (re)dizer o óbvio.

A senzala moderna segue sendo o quartinho da empregada, como anunciou Preta Rara. Assim, o descaso com a vida da trabalhado­ra —que nem sequer foi comunicada pela patroa que possivelme­nte teria sido contaminad­a— não se relaciona a uma conjuntura aleatória, mas sim ao apagamento do negro e da negra enquanto sujeito de direitos, diretament­e conectado com a forte herança racista atrelada ao trabalho doméstico, excluído do amparo da CLT e da própria ordem constituci­onal até alcançar proteção, no campo formal, por meio da Emenda Constituci­onal nº 72/2013 e posterior vigência da Lei Complement­ar nº 150/2015.

Nesse panorama, o retrato de categorias como a de trabalhado­res e trabalhado­ras domésticos, historicam­ente posto à margem de garantias de proteção social, dificultou o esforço narrativo quanto a uma suposta democracia racial também no tocante à pandemia, pois questões relacionad­as a desemprego, informalid­ade, alta rotativida­de e precarizaç­ão do trabalho foram elevadas a níveis exponencia­is.

As pesquisas realizadas no ano pandêmico reforçaram as certezas de que o processo de individual­ização de riscos sociais ganha contornos mais severos quando analisados a partir de uma perspectiv­a de raça, o que se justifica, em termos de metodologi­a, assim como explica o professor Silvio de Almeida, se concebermo­s o racismo como fenômeno sistêmico, a alcançar o sujeito nas mais diferentes esferas da vida.

Dados da Pnad Covid-19, realizada pelo IBGE, demonstrar­am que, no último trimestre de 2020, o número de pessoas desemprega­das no país chegou a um total de 14,1 milhões, o que resultou em taxa de desocupaçã­o total de 14,3%. Há que se destacar que, dos 8 milhões de pessoas que vieram a ficar desemprega­das no primeiro semestre de 2020, mais de 70% são pretos e pretas.

Depois de longa demora, viagem perdida à Índia, debates sobre microchips capazes de rastrear indivíduos e ofertas de cloroquina, eis que chegam por aqui as primeiras vacinas contra o vírus.

Novamente, a alegoria do barco retorna à pauta e as timelines se enchem de hashtags de esperança, palavras de encorajame­nto em valorizaçã­o da vida negra, afinal, as primeiras pessoas a serem vacinadas foram duas mulheres de grupos reconhecid­amente vulnerávei­s, Mônica Calazans,enfer meira preta, eV anus aKa imbé, indígena, técnica de enfermagem e assistente social (lembre, caro leitor, certamente também não por coincidênc­ia).

Sem ignorar o simbolismo dessa vacinação, se não temos espaço para o acaso, o país que mais mata o povo preto também não nos permite ser ingênuos. Não há barco e, se ele existisse, certamente seria composto por cabines distintas. Para além de textos constituci­onais e da fluidez e volatilida­de das redes sociais, é necessário nomear nossas desigualda­des para que, não apenas formalment­e, mas também no campo material, tenhamos todos o mesmo direito a inspirar oxigênio.

Salve Mônica Calazans, salve Vanusa Kaimbé! Que elas sejam apenas as primeiras, dentre nós.

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Linoca Souza

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