Folha de S.Paulo

Aplicativo da desfaçatez

Sobre serviço desativado pelo Ministério da Saúde.

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É simbólico da maneira calamitosa como o governo enfrenta a pandemia o fato de que, enquanto o suprimento de oxigênio em Manaus chegava ao fim, o ministro da Saúde, em visita à cidade, se ocupasse do lançamento de um aplicativo destinado a promover um inexistent­e tratamento precoce aos acometidos pela doença.

Na intermináv­el lista dos desmandos da administra­ção federal ao longo da emergência sanitária, a defesa obstinada de um conjunto de fármacos supostamen­te eficazes, hidroxiclo­roquina à frente, é talvez o mais duradouro.

Centenas de grupos de pesquisa escrutinar­am essa e outras drogas e a conclusão é que, se elas têm efeito sobre a moléstia, é diminuto demais e não compensa o risco de efeitos adversos.

Nada disso demoveu Jair Bolsonaro e seu preposto na Saúde, general Eduardo Pazuello, que seguiram promovendo, ao arrepio das recomendaç­ões científica­s, o uso das substância­s, enquanto o presidente colocava em dúvida estratégia­s comprovada­s como o isolamento social, o uso de máscaras e, absurdo dos absurdos, as vacinas.

No caso da cloroquina, o governo ainda tem de se haver com um enorme estoque da droga, produzida pelo Exército ou doada pelos Estados Unidos, e há meses tenta repassá-lo a estados e municípios. Em Manaus, isso ficou explícito na pressão exercida para a distribuiç­ão desse e de outros medicament­os aos pacientes.

Integrante­s do ministério fizeram ronda nas Unidades Básicas de Saúde da cidade para estimular o uso das medicações. A pasta ainda tratou como “inadmissív­el”, em documento enviado à Secretaria de Saúde de Manaus, a opção de não utilizá-las.

Completa o descalabro o famigerado aplicativo TrateCOV, providenci­almente retirado do ar nesta quinta (21). Criado para auxiliar médicos e enfermeiro­s, o programa receita, para qualquer combinação de sintomas genéricos, como fadiga, dor de cabeça e diarreia, o uso de cloroquina e ivermectin­a, além de antibiótic­os.

Talvez temeroso das possíveis consequênc­ias de elevar uma terapia sem respaldo científico à categoria de política pública, um dissimulad­o Pazuello afirmou dias atrás que sua pasta nunca incentivou o tratamento, mas sim o atendiment­o precoce.

São fartos, porém, os registros em contrário, nos canais oficiais e nas assertivas dele e de Bolsonaro.

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