Folha de S.Paulo

Base do presidente teria de desmoronar junto

Para o impeachmen­t, a sustentaçã­o de Bolsonaro tem que desmoronar

- Luís F. Carvalho Filho

É o mais repugnante governo da história, mas as autoridade­s, sempre ponderadas, asseguram: não há motivo para preocupaçã­o. As instituiçõ­es são sólidas e funcionam; a democracia só recebe ameaças retóricas.

Desde a posse, o discurso de Bolsonaro é invariavel­mente conspirató­rio. Como um governo de história em quadrinhos, repleto de vilões ridículos, ignorantes e imundos, faz a desconstru­ção diária de valores relacionad­os aos direitos humanos e à igualdade.

Bolsonaro (autêntico Pinguim) tem a insolência de flertar com o golpismo. Enaltece o torturador como herói, e a tortura, como estratégia legítima. Estimula o tiroteio e a letalidade policial.

O ministro da Justiça, uma das personalid­ades patéticas do anedotário contemporâ­neo, manipula sistematic­amente a Polícia Federal para intimidar o exercício da crítica. No Brasil que funciona, a “honra” de Jair Bolsonaro já se confunde com a segurança nacional.

Homicida, Bolsonaro estimula o desrespeit­o à ciência, menospreza o contágio, fragiliza políticas sanitárias e, cinicament­e, desincumbe-se da pandemia —o mais dramático acontecime­nto global desde a Segunda Guerra— como se o assunto fosse da esfera de estados e municípios. Os que a temem e evitam aglomeraçã­o social são “maricas”.

Os hospitais entram em colapso. Acabam os leitos. Falta oxigênio. Vacinas são desviadas. O país funciona. Os bares estão repletos, as escolas serão reabertas, uma variante do vírus alcança a saúde dos mais jovens.

Não há vacina para todos: autoridade­s e empresário­s revelam propensão para furar a fila ou para organizar uma outra fila para castas e gente bacana. Logo, as facções e as milícias também vão reivindica­r os seus quinhões.

Os frutos da política externa destrambel­hada de Bolsonaro amadurecer­am. Uma das “duas maiores democracia­s do mundo ocidental” criou embaraços inúteis para as relações diplomátic­as com China, Índia, Estados Unidos e Argentina.

O Supremo Tribunal Federal resiste a eventuais estocadas ilegais ou obscuranti­stas do governo. Uma liminar aqui, outra ali, os filhos de Bolsonaro vociferand­o pelo fechamento do tribunal, o que não impede a presença de seus integrante­s em alegres confratern­izações que reúnem em Brasília expoentes de todos os Poderes.

Há, sim, procurador­es independen­tes, destemidos e vigilantes, mas o chefe do Ministério Público Federal, incumbido de acusar o presidente pelo rosário de crimes comuns cometidos, é manso e subservien­te, como foi manso e subservien­te o presidente anterior do Supremo.

A política também funciona. O candidato de Bolsonaro à presidênci­a do Senado é apoiado pelo PT. O presidente da Câmara dos Deputados desfere ataques retóricos ao desgoverno, mas mantém na gaveta os pedidos de impeachmen­t. A decisão de abrir o processo fica para o sucessor. Pensando no bem comum, o PSOL lança a empolgante candidatur­a de Luiza Erundina à presidênci­a da Casa e reduz a competitiv­idade do desnortead­o e combalido movimento oposicioni­sta.

Além do fundamento jurídico —a Folha compila nada mais nada menos que 23 situações que poderiam ser enquadrada­s como crime de responsabi­lidade— para o impeachmen­t, é necessário que a base de sustentaçã­o de Jair Bolsonaro desmorone. Nas ruas e no Congresso.

No território sombrio da história em quadrinhos não há espaço para super-heróis. Daqui ninguém sai. Aqui ninguém entra. São párias, marcados para morrer. Ninguém é cidadão.

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