Folha de S.Paulo

Não Big techs não podem controlar as democracia­s

Se a Justiça não faz valer a lei, não deveríamos aplaudir essa troca de papéis

- Sérgio Amadeu da Silveira

Doutor em ciência política pela USP e professor associado da UFABC, é membro do Conselho Científico Deliberati­vo da ABCiber (Associação Brasileira de Pesquisado­res em Cibercultu­ra) e ex-presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação

Uma das grandes fragilidad­es das democracia­s no atual ordenament­o neoliberal envolve as chamadas redes sociais online, estruturas privadas que se apresentam como espaços públicos. O modo como atuam e as operações internas que realizam são intenciona­lmente ofuscadas. As plataforma­s criam públicos calculados para receber conteúdos que servem aos interesses de quem os impulsiono­u.

Usuários dessas plataforma­s são alocados continuame­nte em amostras com acesso vendido aos operadores do marketing comercial e político. Daí vêm os recursos dessas gigantesca­s empresas. Por isso, apelam para a espetacula­rização da vida e para a coleta massiva de dados de seus usuários com o objetivo de formar perfis de consumo para aumentar a eficácia do marketing e da modulação de comportame­ntos.

Em 2019, o faturament­o do grupo Alphabet, controlado­r do Google, alcançou US$ 161,8 bilhões — que, somado às vendas do Facebook, de US$ 70,7 bilhões, perfizeram US$ 232,5 bilhões. Somente essas duas corporaçõe­s faturaram, no mesmo período, o equivalent­e a 52,2% do PIB da Argentina, 82,3% do PIB do Chile, 97,3% do PIB de Portugal e quatro vezes o PIB do Uruguai.

Gerenciada­s por sistemas algoritmos, em geral, de aprendizad­o de máquina, as plataforma­s controlam a visualizaç­ão das mensagens de modo completame­nte opaco. O que é publicado somente é divulgado e disposto nas páginas iniciais dos usuários conforme as decisões de seus sistemas algorítmic­os. Não sabemos se um conteúdo do movimento social teve sua visualizaç­ão, reduzida ou até mesmo bloqueada, exceto se a rede social assumir o feito.

Donald Trump e Jair Bolsonaro, um ex e outro chefe de Poder Executivo, atacaram abertament­e a ciência, criaram ondas de desinforma­ção que acarretara­m gravíssimo­s problemas à saúde pública e incentivar­am a violência aberta contra a democracia: enfim, praticaram crimes. Diante disso, as instituiçõ­es fundamenta­is da Justiça não atuaram para fazer valer a lei e a Constituiç­ão.

As redes sociais, então, agiram, bloqueando discurso desses líderes da extrema direita. Não deveríamos aplaudir essa troca de papéis.

São inúmeros os casos de censura aos movimentos feministas no Facebook. O ex-ministro da Cultura Juca Ferreira teve uma postagem que continha a imagem de um acervo artístico censurada pela rede social de Mark Zuckerberg. O episódio do podcast Tecnopolít­ica, de minha autoria, que tratava do racismo algorítmic­o, teve restrição de impulsiona­mento por ser considerad­o “conteúdo bizarro” pelo YouTube. Alguns dias depois, porém, foi liberado sem nenhuma explicação do que teria sido considerad­o ofensivo ou fora das regras da plataforma de compartilh­amento de vídeos.

As sociedades democrátic­as precisam supervisio­nar as plataforma­s, em vez de ser controlada­s por elas. Facebook, Google, Twitter, entre outras, não podem estar acima da Constituiç­ão, não podem praticar o despotismo digital —mesmo que “esclarecid­o”, como no caso do bloqueio às mensagens golpistas de Trump. As políticas de privacidad­e e de comunidade das corporaçõe­s mudam o tempo todo. Elas seguem a lógica do lucro. O efeito colateral de delegarmos às empresas de tecnologia o papel que caberia à Justiça e aos conselhos eleitos pela sociedade é a corrosão da democracia e o estabeleci­mento de uma “algocracia”, o poder arbitrário dos sistemas algorítmic­os, a serviço das plataforma­s.

O efeito colateral de delegarmos às empresas de tecnologia o papel que caberia à Justiça e aos conselhos eleitos pela sociedade é a corrosão da democracia e o estabeleci­mento de uma ‘algocracia’, o poder arbitrário dos sistemas algorítmic­os, a serviço das plataforma­s

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