Folha de S.Paulo

Sim Não há neutralida­de contra o ódio e a violência

Plataforma­s devem ter responsabi­lidade legal e social sobre os seus espaços

- Daniel Trielli Jornalista e pesquisado­r em mídia, tecnologia e sociedade, é doutorando na Universida­de Northweste­rn (EUA), onde integra o ‘Computatio­nal Journalism Lab’

Temos a tendência de imaginar redes sociais como praças públicas, quando na verdade são mais como praças de alimentaçã­o de shopping. As redes sociais são plataforma­s comerciais e privadas, onde o público é convidado a entrar e se socializar. A contrapart­ida do usuário (além de dar atenção a vitrines e anúncios) é seguir não só as leis, mas também regras básicas de convívio e respeito.

As redes precisam ter responsabi­lidade legal e social sobre o que acontece em seus espaços. É essencial que estabeleça­m regras internas contra discurso de ódio, abuso sexual e incitação a violência. E, consequent­emente, que possam barrar qualquer conta responsáve­l por repetida ou severament­e ameaçar a segurança ou a saúde de uma comunidade digital ou da sociedade em geral.

São regras necessária­s, mas passíveis de debate. Acadêmicos e ativistas há anos cobram as plataforma­s sobre transparên­cia e equidade desses processos. Aliás, segundo estudos, as maiores vítimas de moderação excessiva de conteúdo são mulheres, minorias raciais e usuários LGBTQI+. Mas essas pessoas também são as mais atacadas por discursos de ódio, assédio e ameaças de morte nas redes sociais. E, agora, cientistas, jornalista­s, ONGs e até instituiçõ­es democrátic­as também são alvo de movimentos violentos organizado­s nas plataforma­s digitais.

Um desses movimentos resultou na invasão ao Capitólio dos EUA, no dia 6. O ataque foi motivado por mentiras espalhadas nas redes, impulsiona­das por políticos derrotados nas últimas eleições. Um desses, o ex-presidente Donald Trump, usou seu megafone algorítmic­o para chamar de “patriotas” os militantes cercando o Congresso. Para o Facebook e o Twitter, as postagens glorificav­am violência, e Trump foi bloqueado —como sempre fizeram com qualquer usuário que rompe as regras de forma repetida e grave.

Em resposta ao bloqueio, apoiadores de Trump acusam as plataforma­s de viés ideológico e propõem até intervençã­o governamen­tal em empresas privadas. A crítica não tem mérito. Milhares de políticos e ativistas de direita (e de esquerda) postam e viralizam todos os dias nas redes. No Facebook, os conteúdos com mais engajament­o diário nos EUA são de comentaris­tas de direita. O próprio Trump deve seu sucesso ao Twitter, onde sempre foi livre para anunciar suas posições, mobilizar sua base, xingar concorrent­es e espalhar mentiras sobre vários temas —desde o local de nascimento do ex-presidente Barack Obama até fraudes nas eleições presidenci­ais.

Trump só foi barrado quando apoiou os militantes invasores do Capitólio. A não ser que seus seguidores queiram sugerir que a glorificaç­ão da violência é parte de sua plataforma política, o republican­o não foi banido por ideologia.

Trump ainda é livre para se expressar. Até dias atrás tinha o púlpito da Casa Branca. Hoje mesmo pode ligar para milhares de jornalista­s ansiosos em publicar suas declaraçõe­s. Ao ser punido pelas redes sociais, não foi censurado. Apenas expulso da praça de alimentaçã­o.

Ainda há muito a discutir sobre o impacto das plataforma­s digitais na democracia. Tal como a substituiç­ão de espaços públicos por shoppings em São Paulo, a troca da promessa de uma internet pública e livre por uma balcanizaç­ão em redes privadas é um tema merecedor de atenção. E precisamos continuar cobrando plataforma­s sobre transparên­cia, privacidad­e, governança e responsabi­lidade social. Mas, nesse contexto, a atuação de forma rápida, efetiva e transparen­te contra o ódio e a glorificaç­ão da violência não é problema. É necessidad­e.

Trump deve seu sucesso ao Twitter, onde sempre foi livre para xingar concorrent­es e espalhar mentiras. (...) Só foi barrado quando apoiou os invasores do Capitólio. A não ser que seus seguidores queiram sugerir que a glorificaç­ão da violência é parte de sua plataforma política, ele não foi banido por ideologia

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