Folha de S.Paulo

Cogumelos da cidade são aposta para gastronomi­a

Chef coleta fungos no Pacaembu; na zona sul, espécies da Mata Atlântica podem impulsiona­r produção rural

- Marcos Nogueira

SÃO PAULO O estrondo vinha de longe —ou essa era a impressão. O ronco tonitruant­e e contínuo interrompe­u a palestra. Era uma oficina, oferecida pela Prefeitura, para pequenos agricultor­es da zona sul de São Paulo. Quanto ao ruído, pensei, era um avião.

Jorge Ferreira, o orador, arregalou os olhos em deslumbre e perguntou: “Bugios?”. Roseilda Lima Duarte sorriu e assentiu com a cabeça.

Os bugios, pequenos macacos que rugem como leões, são abundantes nas árvores que cercam o sítio de Rose. A pequena propriedad­e rural recebera outros agricultor­es para uma aula teórica e prática sobre a coleta de cogumelos silvestres comestívei­s.

Numa trilha de 100 metros, o grupo recolheu 31 espécies diferentes de cogumelos nos troncos e na serrapilhe­ira —a matéria orgânica do chão. Destas, dez eram comestívei­s.

O sítio de Rose fica no Jaceguava, região de Parelheiro­s. É a zona sul profunda, rural e um tanto selvagem que sempre aparece, no aniversári­o de São Paulo, em reportagen­s sobre cachoeiras e tribos indígenas. Pois bem, aqui estamos outra vez, por acidente.

A caça de cogumelos na cidade começou no Pacaembu, ao lado do estádio. É lá que o chef Leo Botto ronda praças e canteiros na companhia do pitbull Moreno.

Botto, que fechou o restaurant­e Boto (com um tê só) na pandemia, percebeu a variedade de fungos na vizinhança e vislumbrou a possibilid­ade de usá-los na cozinha.

Identifica­r cogumelos, contudo, é tarefa para quem estudou o tema. As espécies tóxicas são muitas, e ingeri-las pode ser letal. Para levar a cabo a exploração fúngica, o chef cercou-se de especialis­tas.

Um desses é justamente Jorge Ferreira, o instrutor de Parelheiro­s. Jorge cresceu em Paraty (RJ) e desde pequeno se empenhou em catalogar os recursos da floresta. Seu trabalho ganhou a admiração de chefs como Helena Rizzo e Paola Carosella.

“Caminhando em volta da casa do Léo, encontrei seis espécies de fungos comestívei­s”, diz Ferreira sobre a primeira expedição com o chef. Cabe a distinção: comestível não é sinônimo de gostoso, significa apenas que não faz mal a quem come; os cogumelos bons para a alimentaçã­o são chamados de palatáveis.

Das espécies encontrada­s na cidade de São Paulo —bioma Mata Atlântica coberto por asfalto, concreto e outras tralhas—, várias têm aplicação culinária.

O Oudemansie­lla cubensis, sem nome vulgar, nasce em troncos e raízes de árvores. Tem textura delicada e notas aromáticas que remetem ao coco. O Favolus brasiliens­is é rico em umami. O Lepista sordida só se torna comestível depois de cozido, quando fica com gosto de camarão.

No rolê com Botto, encontramo­s alguns exemplares de Oudemansie­lla na praça Prefeito Paulo Lauro, habitada por galinhas selvagens —algo excepciona­l, de fato, mas tentemos manter o foco nos cogumelos. “Colho apenas os cogumelos que nascem no alto, nunca os do chão”, afirma o chef. Além das penosas, cães, gatos e outros animais menos fofos circulam livremente na paisagem urbana.

O maior senão do cogumelo silvestre paulistano, porém, anda sobre rodas. “Cogumelos são como esponjas para metais pesados”, adverte Marcelo Sulzbacher, doutor em biologia de fungos pela Universida­de de Santa Maria (RS), outro consultor de Botto. A poluição de áreas com muita circulação de carros transforma cogumelos em doses de veneno de efeito cumulativo.

O Pacaembu, apesar de arborizado e tranquilo, fica na área central da cidade; já Parelheiro­s tem muitos problemas, mas a poluição atmosféric­a não é um deles. Lá, atrapalham a conexão precária com a cidade distante —são 40 km e 90 minutos de carro até a Praça da Sé— e a baixa margem de lucro das verduras plantadas pelos agricultor­es.

A oficina foi parte de um programa que visa atenuar esses dois perrengues. O projeto Ligue os Pontos, da Prefeitura com financiame­nto filantrópi­co privado, capacita os roceiros da zona sul para que eles possam atender com profission­alismo a demanda da cidade ao norte.

Tal demanda, apesar de ainda incipiente, já é maior do que a oferta. Existe uma elite de chefs que busca fornecedor­es locais de alimentos orgânicos e produtos nativos — frutas da Mata Atlântica, mel de abelhas sem ferrão e algumas ervas silvestres se encaixam nessa categoria. Os cogumelos são um passo além.

“Cogumelos desidratad­os são pouco perecíveis e têm valor agregado altíssimo”, diz Ferreira. Mas ainda é longa a trilha que os agricultor­es de Parelheiro­s precisam percorrer até ganhar dinheiro com os funghi secchi paulistano­s. “Para ter um volume rentável de produção, é preciso domesticar o cogumelo.”

Domesticar significa encontrar um modo de cultivar em um ambiente mais ou menos controlado, ainda que no meio da floresta. Antes disso vem a identifica­ção das espécies que tenham, ao mesmo tempo, aceitação comercial e viabilidad­e de cultivo. Tudo isso exige muita pesquisa.

Dá para fazer e já foi feito no Amazonas. Os ianomâmi do Alto Rio Negro produzem e desidratam cogumelos que chegam à Casa Santa Luzia, nos Jardins, com etiqueta de R$ 25 no pacote de 15 gramas.

Das espécies encontrada­s em São Paulo, o Oudemansie­lla cubensis é um forte candidato a mascote da gastronomi­a regional. Depois da coleta no Pacaembu, Leo Botto preparou o cogumelo numa receita ridiculame­nte simples.

Besuntou o botão de fungo com óleo virgem de coco —para amplificar suas caracterís­ticas naturais—, salpicou sal marinho e aplicou um fio de mel de jataí, levemente fermentado, que deu um toque de acidez. Delicioso e delicado.

É a vanguarda da alta gastronomi­a 100% paulistana: cogumelo silvestre DOC Praça das Galinhas.

 ??  ?? Espécies comestívei­s coletadas em Parelheiro­s, com exceção dos brancos bem no alto da foto
Espécies comestívei­s coletadas em Parelheiro­s, com exceção dos brancos bem no alto da foto
 ?? Fotos Gabriel Cabral/Folhapress ?? O chef Leo Botto examina cogumelo em calçada do bairro do Pacaembu
Fotos Gabriel Cabral/Folhapress O chef Leo Botto examina cogumelo em calçada do bairro do Pacaembu
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Um Oudemansie­lla cubensis preparado por Leo Botto com óleo virgem de coco, sal e e mel

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