Folha de S.Paulo

Cumprindo ordens

Precisamos mudar a cultura de despersona­lização de quem faz escolhas de olhos abertos

- Rodrigo Zeidan Professor da New York University Shangai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ

Werner Heisenberg é o maior exemplo, dos últimos cem anos, do uso da desculpa de que “estava só seguindo ordens”.

O cientista, o primeiro a descrever o princípio da incerteza da física quântica, foi o chefe do projeto nazista da bomba atômica. Depois da guerra, Heisenberg ainda criou uma história fantasiosa de que teria aceitado o posto para sabotar o projeto por dentro. A verdade é que ele apoiava o projeto nazista de bom grado.

Um regime não se sustenta somente com líderes megalomaní­acos. É preciso aquiescênc­ia de parte da burocracia.

Obviamente, o Brasil não é a Alemanha nazista, mas também parece que temos nossos Heisenberg­s, que nem competênci­a científica têm, mas que deverão tentar se isentar de qualquer responsabi­lidade quando for a hora de pagar a conta com a história.

O problema brasileiro é que historicam­ente essa estratégia funciona. É parte da nossa cultura a falta de accountabi­lity, termo para o qual não há tradução perfeita para português.

Alguém ter accountabi­lity é entender e aceitar as consequênc­ias, para o bem e para o mal, de suas ações, sem sair culpando os outros por tudo.

No Brasil, abusamos do sujeito indetermin­ado. Nenhuma crise teria seria causada pelos governante­s de plantão. Já tivemos presidente renunciand­o por supostas pressões de forças ocultas, e nossas crises cambiais passadas viriam de choques externos, FMI etc.

É bem comum, tanto para a direita quanto para a esquerda, culpar o resto do mundo pelo nosso atraso. O Brasil seria sempre vítima dos Illuminati, que se reuniriam em Washington, Davos ou Pequim para tramar contra o país. Entretanto, o atual governo transformo­u essa estratégia em arte. “Não vai botar no meu colo essa conta” ou “cobre seu governador” são somente algumas das pérolas do presidente. Pior, na sua tentativa de escapar das consequênc­ias dos seus atos, posa de vítima de teorias de conspiraçã­o convenient­es à sua narrativa.

Dependendo do dia, o presidente se diz perseguido pelos veículos de imprensa, governo chinês, autoridade­s europeias e intelectua­is com muitos seguidores em redes sociais. Tudo é culpa de fatores externos, nunca da gestão do governo.

Esse comportame­nto também é comum nos ministros e secretário­s do seu governo. Eduardo Pazuello ignorou os pleitos por oxigênio em visita a Manaus e anunciou que o uso da cloroquina limitaria os casos de hospitaliz­ação por Covid-19.

Confrontad­o com a tragédia da cidade, o general da ativa agora diz que teria feito “tudo” por Manaus. Pior, se faz de vítima ao se mostrar indignado pelas críticas à sua gestão e à participaç­ão de militares no governo.

Outro exemplo é o do secretário de Política Econômica, que anunciou, em meados de novembro, que a probabilid­ade de uma segunda onda de Covid-19 no Brasil seria baixíssima. Disse mais, que no mês seguinte o país teria patamares de movimentaç­ão pré-Covid. E isso, na sua visão, seria bom para o país.

O negacionis­mo do presidente é traduzido em políticas públicas pelos burocratas selecionad­os pelo presidente, que depois vão argumentar que não tinham muito o que fazer.

Uma morte é uma tragédia,

e 215 mil, uma estatístic­a.

Precisamos mudar a cultura de despersona­lização de quem faz escolhas de olhos abertos. Problemas tem donos, e ministros e secretário­s, se coniventes, deveriam ter seus nomes marcados para sempre como cúmplices desse governo. Afinal, com burocratas só cumprindo ordens, é possível destruir um país.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil