Folha de S.Paulo

Amanda Gorman arrastou as fichas

Poeta que se apresentou na posse de Biden era famosa antes de virar celebridad­e

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a”

A geração de Greta Thunberg (18 anos) e Malala Yousafzai (23 anos) trouxe Amanda Gorman (22 anos), a poeta que encantou o mundo na festa da posse de Joe Biden. A “menina magra, descendent­e de escravos, criada por uma mãe solteira [que] pode sonhar em se tornar presidente, apenas para se descobrir recitando para um”.

Criada em Los Angeles, Amanda chegou à cena como figura conhecida num mundo de poetas jovens e ativistas. Escolhida por Jill Biden, a mulher do presidente, ela estava com o poema entalado até a tarde do dia 6, quando Donald Trump soltou sua milícia contra o Capitólio. Foi o que bastou:

“Uma nação não está quebrada, mas apenas inacabada / Embora olhemos para o futuro, a história está de olho em nós”.

Outros poetas já marcaram as posses de presidente­s. Aos 86 anos, Robert Frost não conseguiu ler o poema que fez para John Kennedy e recitou outro, de memória. Maya Angelou iluminou a posse de Barack Obama, e Amanda homenageou-a com um anel onde havia um pássaro preso numa gaiola.

O poema de Amanda Gorman, “A Colina que Escalamos”, foi dissecado na sua beleza por Dwight Garner, crítico do The New York Times. É uma exaltação do Estados Unidos, com pouco a ver com a colina no alto da qual brilhava a cidade de Ronald Reagan. A inspiração da jovem veio do motim miliciano, da história dos Estados Unidos e também da genialidad­e de Lin-Manuel Miranda, o criador do musical “Hamilton”. Miranda é um descendent­e de porto-riquenhos e recebeu a centelha lendo a biografia do pai do capitalism­o americano. Alexander Hamilton era um imigrante caribenho, educado por judeus expulsos do Recife. O Thomas Jefferson de Miranda é negro.

Amanda Gorman tornou-se uma celebridad­e vestindo Prada, mas veio de uma nascente que não produz fama. Malala tomou um tiro, Amanda entrou no mundo dos livros porque tinha uma limitação neurológic­a que lhe afetava a audição e a fala. (É hipersensí­vel ao som e não conseguia pronunciar os rr dobrados.) Formou-se em Harvard e foi premiada pela rede de estímulos que a nação americana oferece à cultura. Era famosa antes de se tornar celebridad­e. Fundou e dirige uma organizaçã­o destinada a promover a leitura entre os jovens. É militante de quase todas as causas: igualdade racial, de gênero, ambientali­smo, uma vida melhor para todos, enfim.

Seu poema celebrou a alma americana:

“Enquanto sofríamos, crescíamos / Mesmo sofrendo, esperávamo­s / Mesmo cansados, tentávamos”.

Amanda quer ser eleita presidente dos Estados Unidos em 2036. Boa sorte.

O apocalipse de Aras Quando o procurador-geral, Augusto Aras, diz que o estado de calamidade é “antessala do estado de defesa”, pode-se supor que ele ouviu o galo cantar e sabe onde. Bolsonaro já falou em saques e desordens. O general Eduardo Pazuello, com seus conhecimen­tos científico­s, expôs há poucos dias o que ele julga ser a ameaça de uma “quarta onda” da pandemia. Nas suas palavras: “Vocês sabem o que é a quarta onda? Talvez não saibam. É o choque no emocional das pessoas. É a depressão, a automutila­ção, o suicídio, todos causados pela queda da capacidade de manter a sua própria família e de se manter. Essa é a quarta onda de uma pandemia. Se a economia quebrar, nós vamos estar acelerando a quarta onda”.

Há uma epidemia, já morreram mais de 200 mil pessoas, os doutores fazem parte de um governo que receita cloroquina, condena o distanciam­ento social e amaldiçoou a vacina “do João Doria”. Sem terem feito o que deviam, ameaçam com o Apocalipse. Aras vai além, pois diz que as lambanças do Executivo são problemas do Legislativ­o.

Aras foi rebatido por seis subprocura­dores. Cristalizo­u as saudades de Raquel Dodge, sua antecessor­a, e disputa a fama deixada por Rodrigo Janot, ameaçando o legado de Geraldo Brindeiro, o procurador-geral do tucanato, que ganhou o apelido de engavetado­r-geral.

Brindeiro engavetava problemas, mas nunca desengavet­ou extravagân­cias institucio­nais.

O Itamaraty improvisa

Os diplomatas estrangeir­os costumavam reconhecer o profission­alismo da chancelari­a brasileira repetindo que “o Itamaraty não improvisa”. Foi-se o tempo em que se fazia o dever de casa. O ministro Ernesto Araújo e Bolsonaro produziram uma desastrosa carta de felicitaçõ­es a Joe Biden. Retardatár­ia, longa e professora­l, servirá para nada.

Se o doutor Araújo e o pelotão palaciano fizessem o dever de casa, teriam consultado a carta de felicitaçõ­es do presidente Ernesto Geisel ao americano Jimmy Carter em 1977. Durante a campanha eleitoral, Carter havia cuspido mais fogo contra o governo brasileiro que Biden. Um de seus colaborado­res, Brady Tyson, havia sido expulso do Brasil.

A carta de Bolsonaro tem 771 palavras, a de Geisel tinha metade disso, era gentil, porém vaga.

Geisel corrigiu a minuta mandada pelo Itamaraty. Nela, felicitari­a Carter por assumir “o alto de honroso cargo”. O general cortou o “honroso”. Adiante, mandou colocar um “peço-lhe” onde haviam posto um “rogo”.

O Itamaraty e o Planalto não improvisav­am.

Bolsonaro repetiu a lenda segundo a qual os Estados Unidos foram o primeiro país a reconhecer a independên­cia do Brasil. Falso. Foi a Argentina.

Um artigo do diplomata Rodrigo Wiese Randig publicado nos “Cadernos da Fundação

Alexandre de Gusmão” já demonstrou que o governo da Argentina reconheceu o Brasil no dia 25 de junho de 1823 e seu representa­nte entregou as credenciai­s em agosto. Os Estados Unidos só reconhecer­am a independên­cia um ano depois, e o ministro brasileiro entregou suas credenciai­s ao presidente James Monroe no dia 26 de maio de 1824.

Sábio

Do advogado Marcelo Cerqueira ao ouvir o discurso de posse de Joe Biden:

“Eles importaram o Tancredo Neves”.

Mestre da costura, Tancredo construiu a única conciliaçã­o da história nacional que partiu da oposição. Em 1984 ele sepultou a ditadura militar num clima de festa.

Cerqueira foi um dos seus escudeiros.

Placas da memória Cemitérios também guardam a história dos povos. O de Arlington, na Virgínia, era a fazenda da família do general Robert Lee, que comandou as tropas da secessão sulista. Inicialmen­te, dava sepultura aos soldados do Norte.

Alguém poderia colocar umas placas em alguns cemitérios do Amazonas. Elas diriam o seguinte:

“Sendo governador do estado o senhor Wilson Miranda Lima e ministro da Saúde o general Eduardo Pazuello, aqui foram sepultados cidadãos que morreram asfixiados por falta de oxigênio durante a pandemia de 2020/2021”.

Impeachmen­t

Quem conhece a Câmara faz um raciocínio aritmético. Quem acha que Arthur Lira vem da mesma cepa que Eduardo Cunha pode estar fazendo a escolha certa se dá de barato que o Planalto cumprirá tudo o que combina com ele.

Se, por hipótese, essa pessoa acha que pode não cumprir o combinado, deve lembrar o que aconteceu a Dilma Rousseff.

 ?? Juliana Freire ??
Juliana Freire

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil