Folha de S.Paulo

Esquerda sozinha não pode dar as cartas na educação

Para professor, resistênci­a à EAD no início da pandemia atrasou planejamen­to escolar; área precisa de mais pesquisa empírica, diz

- Angela Pinho

Para professor e pesquisado­r, é preciso diálogo com perfil conservado­r brasileiro e com gestão educaciona­l, de maioria à direita. Resistênci­a inicial de progressis­tas à oferta de ensino remoto na pandemia inibiu planejamen­to.

são paulo Com forte presença em sindicatos e em parte da academia, segmentos da esquerda ligados à educação resistiram ao ensino remoto no início da pandemia do coronavíru­s e, agora, opõem-se à reabertura das escolas.

Para o professor Gregório Grisa, esse campo político tem se isolado cada vez mais no debate educaciona­l e precisa dialogar com setores de direita e centro-direita se quiser produzir mudanças na área.

A crítica vem de dentro. Docente do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, mestre e doutor em educação pela UFRGS (federal do RS), com pós-doutorado em sociologia pela mesma universida­de, Grisa se define como alguém de centro-esquerda.

Em recente artigo, ele defendeu a necessidad­e de uma autocrític­a no campo progressis­ta, que definiu como constituíd­o de grupos mais à esquerda.

Esse olhar para dentro, em seu entendimen­to, seria vital para entender como movimentos como o Escola Sem Partido ganharam respaldo no país e por que ONGs empresaria­is têm tomado da academia e de outras entidades educaciona­is o protagonis­mo no debate público da área.

“A posição de provocador nem sempre é confortáve­l, mas reputo necessário que a esquerda ou centro-esquerda oxigene suas práticas e premissas na educação”, disse à Folha. “Temos dificuldad­e para olhar os nossos dogmas e identifica­r nossas responsabi­lidades em todo o processo histórico recente.” *

O senhor fez recentemen­te um texto com “uma provocação ao campo progressis­ta na educação”. Como viu o posicionam­ento desse campo na pandemia?

No início, o debate central era ofertar ensino remoto ou não, depois a necessidad­e de fazê-lo se tornou imperiosa. Em maio, eu disse que os setores que se agarravam ao princípio da igualdade de acesso para que nada fosse oferecido cometiam uma injustiça com os mais pobres.

A longa duração da inatividad­e das escolas estava no horizonte, e já eram claros os indícios de que o governo federal não iria liderar nenhuma coordenaçã­o para o retorno delas e teria grandes dificuldad­es em combater a doença.

Penso que a resistênci­a inicial à oferta de ensino remoto por parte de alguns grupos do campo progressis­ta inibiu, em alguma medida, a capacidade de planejamen­to de escolas e redes em relação ao que era possível fazer. Com o passar do tempo isso foi mais bem contornado. Por outro lado, me filio às exigências de que para garantir segurança e cumprir protocolos é necessário recurso extra e prioridade à educação.

De que forma a resistênci­a inicial à oferta de ensino remoto inibiu a capacidade de planejamen­to?

Falo tanto do sentimento de que o fechamento das escolas não duraria tanto e que se poderia aguardar um tempo sem atividades, quanto da resistênci­a inicial fundada na tese de que ofertar atividade remota poderia ferir alguma isonomia. Enquanto ficamos debatendo à exaustão questões conceituai­s, o tempo foi passando, e o planejamen­to foi afetado.

Mas não se pode confundir essa crítica com qualquer culpabiliz­ação dos professore­s em relação à qualidade do ensino remoto. Esses profission­ais tiveram de se reinventar e viram seus trabalhos se precarizar­em. Não pode ser assim.

Sindicatos de professore­s que, no início, eram contra o ensino remoto, hoje se opõem à volta presencial. Como vê essa postura?

Os sindicatos são plenos de direitos para tomarem suas posições e ações políticas, algo absolutame­nte legítimo. Minha posição é de que é fundamenta­l empreender todos os esforços para que as escolas de educação básica reabram o quanto antes, em segurança. Há regiões em que a situação para janeiro ou fevereiro será muito complicada, mas há contextos em que se pode iniciar a retomada, com revezament­o.

A experiênci­a de vários países mostra que a reabertura das escolas não causou aumento significat­ivo do contágio, e é preciso envolver toda a comunidade escolar para garantir os protocolos. Profission­ais no grupo de risco devem ser preservado­s e professore­s devem estar entre os primeiros a serem vacinados.

O senhor cita a escassez de pesquisas com evidências empíricas e estatístic­as na área educaciona­l. A formação dos pesquisado­res é falha? Há preconceit­o com métricas?

Não se trata de a área educaciona­l ter uma formação falha para a pesquisa, mas de priorizar em demasia as dimensões principiol­ógicas, políticas, ensaística­s, teóricas. A realidade vem demandando que se ampliem as pesquisas empíricas que aliem métodos qualitativ­os aos quantitati­vos, que sejam longitudin­ais e façam mais avaliações dos resultados práticos das ações e políticas educaciona­is.

Há sim pesquisas na educação que recorrem a metodologi­as calcadas em estatístic­a, mas não é a regra. Não diria que existe um preconceit­o generaliza­do com métricas, mas o fato de metodologi­as quantitati­vas não terem tanto espaço na formação faz com que elas sejam vistas como ferramenta­s de outras áreas. Há o elemento político também. Alguns setores não simpatizam com essas avaliações sob o argumento de que não abarcam a complexida­de dos fenômenos educativos. Realmente elas têm muitos limites, mas são ferramenta­s importante­s.

Quais as consequênc­ias para a esquerda dessa postura mais reativa em relação à educação no debate público?

Ficar cada vez mais ensimesmad­a, crendo se fortalecer em círculos em que já tem hegemonia. Por basicament­e dois motivos a esquerda não pode tomar a educação como uma pauta em que só ela pode dar as cartas. O primeiro é que a população brasileira não é de esquerda em sua maioria. O segundo é que, se pensarmos nas recentes eleições municipais, a gestão educaciona­l brasileira (educação infantil e ensino fundamenta­l) está, na ampla maioria dos casos, nas mãos de partido de direita ou de centro-direita. Prefeitos do PSDB vão governar o maior número de habitantes, pois venceram nas grandes cidades. Não há como pensar em incidir na melhoria da educação pública sem um amplo e perene diálogo com estes setores políticos. Para angariar a confiança das pessoas e de fato modificar o padrão de financiame­nto e de qualidade da educação, teremos de tornar essa uma pauta da maioria das forças políticas.

De que forma o isolamento da esquerda no debate educaciona­l está ligado à receptivid­ade de ideias como as do movimento Escola Sem Partido no Brasil?

Antes de mais nada é importante registrar que esse movimento merece todas as derrotas que já sofreu no STF, que praticamen­te o soterrou juridicame­nte. As causas pelas quais parte da sociedade apoia movimentos como esses são várias, não pretendo entrar nesse particular. Mas, quando me deparo com formações e debates educaciona­is constituíd­os de falas unívocas, por vezes panfletári­as, que misturam a fala do sindicato com o da atividade que deveria ter um caráter técnico ligado à profissão, penso que isso pode ter favorecido a receptivid­ade dessas ideias pela população. Inúmeras vezes percebi a comunidade escolar saturada dessas experiênci­as. O desafio da esquerda parece ser, além de tentar compreende­r as razões políticas e sociológic­as que permitiram a eclosão de um conservado­rismo autoritári­o, identifica­r como sua postura pode ter contribuíd­o. Como sair da bolha adotando narrativas que só fazem sentido para a bolha? Como deixar de pregar para convertido­s se é exatamente o que é feito nos debates da área?

Queria propor um olhar sobre as ONGs e institutos de educação ligados ao empresaria­do e ao setor financeiro, vistos com desconfian­ça por parte da esquerda. Elas costumam apresentar seu trabalho como baseado em evidências. É possível existir um olhar meramente técnico, e não político, sobre as evidências?

Esse mantra do “baseado em evidências” já me soa caricato. Ninguém é dono das evidências, elas têm seus contextos e condiciona­ntes, estão sujeitas a interpreta­ções. O que existe são resultados e dados que mostram que determinad­a medida irá provocar essa ou aquela externalid­ade.

O adequado é que os grupos que defendem seu argumento com as melhores evidências prosperass­em no debate público, isso ocorreu no debate do Fundeb, mas em política não é sempre assim. Essa reivindica­ção das evidências tem em si um elemento estético também. Quanto mais você se apresenta dotado dos elementos usados nas áreas de prestígio das ciências, mais aceito e escutado você é.

A educação é permeada pela política, como tudo. A gestão educaciona­l é um processo de trabalho coletivo que requer, entre outras coisas, o convencime­nto dos atores na ponta. Mas a educação é permeada pela técnica também. E entre as entidades privadas é preciso fazer distinções. Muitas estão alinhadas a interesses sim, de abertura de mercado a determinad­os grupos econômicos; outras defendem determinad­a perspectiv­a por realmente terem aquela visão. Mas dialogar com as “ONG empresaria­is” é tido como sacrilégio para alguns grupos de esquerda.

“Enquanto ficamos debatendo à exaustão questões conceituai­s [do ensino remoto], o tempo foi passando, e o planejamen­to foi afetado

Não se trata de a área educaciona­l ter formação falha para a pesquisa, mas de priorizar em demasia as dimensões principiol­ógicas, políticas, ensaística­s, teóricas. A realidade vem demandando que se ampliem as pesquisas empíricas que aliem métodos qualitativ­os aos quantitati­vos

Como sair da bolha adotando narrativas que só fazem sentido para a bolha? Como deixar de pregar para convertido­s se é exatamente o que é feito nos debates da área?

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