Esquerda sozinha não pode dar as cartas na educação
Para professor, resistência à EAD no início da pandemia atrasou planejamento escolar; área precisa de mais pesquisa empírica, diz
Para professor e pesquisador, é preciso diálogo com perfil conservador brasileiro e com gestão educacional, de maioria à direita. Resistência inicial de progressistas à oferta de ensino remoto na pandemia inibiu planejamento.
são paulo Com forte presença em sindicatos e em parte da academia, segmentos da esquerda ligados à educação resistiram ao ensino remoto no início da pandemia do coronavírus e, agora, opõem-se à reabertura das escolas.
Para o professor Gregório Grisa, esse campo político tem se isolado cada vez mais no debate educacional e precisa dialogar com setores de direita e centro-direita se quiser produzir mudanças na área.
A crítica vem de dentro. Docente do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, mestre e doutor em educação pela UFRGS (federal do RS), com pós-doutorado em sociologia pela mesma universidade, Grisa se define como alguém de centro-esquerda.
Em recente artigo, ele defendeu a necessidade de uma autocrítica no campo progressista, que definiu como constituído de grupos mais à esquerda.
Esse olhar para dentro, em seu entendimento, seria vital para entender como movimentos como o Escola Sem Partido ganharam respaldo no país e por que ONGs empresariais têm tomado da academia e de outras entidades educacionais o protagonismo no debate público da área.
“A posição de provocador nem sempre é confortável, mas reputo necessário que a esquerda ou centro-esquerda oxigene suas práticas e premissas na educação”, disse à Folha. “Temos dificuldade para olhar os nossos dogmas e identificar nossas responsabilidades em todo o processo histórico recente.” *
O senhor fez recentemente um texto com “uma provocação ao campo progressista na educação”. Como viu o posicionamento desse campo na pandemia?
No início, o debate central era ofertar ensino remoto ou não, depois a necessidade de fazê-lo se tornou imperiosa. Em maio, eu disse que os setores que se agarravam ao princípio da igualdade de acesso para que nada fosse oferecido cometiam uma injustiça com os mais pobres.
A longa duração da inatividade das escolas estava no horizonte, e já eram claros os indícios de que o governo federal não iria liderar nenhuma coordenação para o retorno delas e teria grandes dificuldades em combater a doença.
Penso que a resistência inicial à oferta de ensino remoto por parte de alguns grupos do campo progressista inibiu, em alguma medida, a capacidade de planejamento de escolas e redes em relação ao que era possível fazer. Com o passar do tempo isso foi mais bem contornado. Por outro lado, me filio às exigências de que para garantir segurança e cumprir protocolos é necessário recurso extra e prioridade à educação.
De que forma a resistência inicial à oferta de ensino remoto inibiu a capacidade de planejamento?
Falo tanto do sentimento de que o fechamento das escolas não duraria tanto e que se poderia aguardar um tempo sem atividades, quanto da resistência inicial fundada na tese de que ofertar atividade remota poderia ferir alguma isonomia. Enquanto ficamos debatendo à exaustão questões conceituais, o tempo foi passando, e o planejamento foi afetado.
Mas não se pode confundir essa crítica com qualquer culpabilização dos professores em relação à qualidade do ensino remoto. Esses profissionais tiveram de se reinventar e viram seus trabalhos se precarizarem. Não pode ser assim.
Sindicatos de professores que, no início, eram contra o ensino remoto, hoje se opõem à volta presencial. Como vê essa postura?
Os sindicatos são plenos de direitos para tomarem suas posições e ações políticas, algo absolutamente legítimo. Minha posição é de que é fundamental empreender todos os esforços para que as escolas de educação básica reabram o quanto antes, em segurança. Há regiões em que a situação para janeiro ou fevereiro será muito complicada, mas há contextos em que se pode iniciar a retomada, com revezamento.
A experiência de vários países mostra que a reabertura das escolas não causou aumento significativo do contágio, e é preciso envolver toda a comunidade escolar para garantir os protocolos. Profissionais no grupo de risco devem ser preservados e professores devem estar entre os primeiros a serem vacinados.
O senhor cita a escassez de pesquisas com evidências empíricas e estatísticas na área educacional. A formação dos pesquisadores é falha? Há preconceito com métricas?
Não se trata de a área educacional ter uma formação falha para a pesquisa, mas de priorizar em demasia as dimensões principiológicas, políticas, ensaísticas, teóricas. A realidade vem demandando que se ampliem as pesquisas empíricas que aliem métodos qualitativos aos quantitativos, que sejam longitudinais e façam mais avaliações dos resultados práticos das ações e políticas educacionais.
Há sim pesquisas na educação que recorrem a metodologias calcadas em estatística, mas não é a regra. Não diria que existe um preconceito generalizado com métricas, mas o fato de metodologias quantitativas não terem tanto espaço na formação faz com que elas sejam vistas como ferramentas de outras áreas. Há o elemento político também. Alguns setores não simpatizam com essas avaliações sob o argumento de que não abarcam a complexidade dos fenômenos educativos. Realmente elas têm muitos limites, mas são ferramentas importantes.
Quais as consequências para a esquerda dessa postura mais reativa em relação à educação no debate público?
Ficar cada vez mais ensimesmada, crendo se fortalecer em círculos em que já tem hegemonia. Por basicamente dois motivos a esquerda não pode tomar a educação como uma pauta em que só ela pode dar as cartas. O primeiro é que a população brasileira não é de esquerda em sua maioria. O segundo é que, se pensarmos nas recentes eleições municipais, a gestão educacional brasileira (educação infantil e ensino fundamental) está, na ampla maioria dos casos, nas mãos de partido de direita ou de centro-direita. Prefeitos do PSDB vão governar o maior número de habitantes, pois venceram nas grandes cidades. Não há como pensar em incidir na melhoria da educação pública sem um amplo e perene diálogo com estes setores políticos. Para angariar a confiança das pessoas e de fato modificar o padrão de financiamento e de qualidade da educação, teremos de tornar essa uma pauta da maioria das forças políticas.
De que forma o isolamento da esquerda no debate educacional está ligado à receptividade de ideias como as do movimento Escola Sem Partido no Brasil?
Antes de mais nada é importante registrar que esse movimento merece todas as derrotas que já sofreu no STF, que praticamente o soterrou juridicamente. As causas pelas quais parte da sociedade apoia movimentos como esses são várias, não pretendo entrar nesse particular. Mas, quando me deparo com formações e debates educacionais constituídos de falas unívocas, por vezes panfletárias, que misturam a fala do sindicato com o da atividade que deveria ter um caráter técnico ligado à profissão, penso que isso pode ter favorecido a receptividade dessas ideias pela população. Inúmeras vezes percebi a comunidade escolar saturada dessas experiências. O desafio da esquerda parece ser, além de tentar compreender as razões políticas e sociológicas que permitiram a eclosão de um conservadorismo autoritário, identificar como sua postura pode ter contribuído. Como sair da bolha adotando narrativas que só fazem sentido para a bolha? Como deixar de pregar para convertidos se é exatamente o que é feito nos debates da área?
Queria propor um olhar sobre as ONGs e institutos de educação ligados ao empresariado e ao setor financeiro, vistos com desconfiança por parte da esquerda. Elas costumam apresentar seu trabalho como baseado em evidências. É possível existir um olhar meramente técnico, e não político, sobre as evidências?
Esse mantra do “baseado em evidências” já me soa caricato. Ninguém é dono das evidências, elas têm seus contextos e condicionantes, estão sujeitas a interpretações. O que existe são resultados e dados que mostram que determinada medida irá provocar essa ou aquela externalidade.
O adequado é que os grupos que defendem seu argumento com as melhores evidências prosperassem no debate público, isso ocorreu no debate do Fundeb, mas em política não é sempre assim. Essa reivindicação das evidências tem em si um elemento estético também. Quanto mais você se apresenta dotado dos elementos usados nas áreas de prestígio das ciências, mais aceito e escutado você é.
A educação é permeada pela política, como tudo. A gestão educacional é um processo de trabalho coletivo que requer, entre outras coisas, o convencimento dos atores na ponta. Mas a educação é permeada pela técnica também. E entre as entidades privadas é preciso fazer distinções. Muitas estão alinhadas a interesses sim, de abertura de mercado a determinados grupos econômicos; outras defendem determinada perspectiva por realmente terem aquela visão. Mas dialogar com as “ONG empresariais” é tido como sacrilégio para alguns grupos de esquerda.
“Enquanto ficamos debatendo à exaustão questões conceituais [do ensino remoto], o tempo foi passando, e o planejamento foi afetado
Não se trata de a área educacional ter formação falha para a pesquisa, mas de priorizar em demasia as dimensões principiológicas, políticas, ensaísticas, teóricas. A realidade vem demandando que se ampliem as pesquisas empíricas que aliem métodos qualitativos aos quantitativos
Como sair da bolha adotando narrativas que só fazem sentido para a bolha? Como deixar de pregar para convertidos se é exatamente o que é feito nos debates da área?