Folha de S.Paulo

Mulher de vanguarda

Biografia revela como Nara Leão foi além da mocinha frágil nos primórdios da bossa nova e fez de sua inquietaçã­o um ato de vanguarda

- Thales de Menezes Autor: Tom Cardoso. Ed.: Planeta. R$ 42 (298 págs.) Ninguém Pode com Nara Leão

Biografia de Nara Leão desfaz estereótip­o de mocinha frágil e tímida colado à cantora para mostrar uma artista sem amarras, que transgredi­a musicalmen­te, politizada e de opiniões contundent­es.

são paulo Autor de biografias saborosas sobre personagen­s como o jornalista Tarso de Castro, que fundou o Pasquim, ou o politizado jogador Sócrates, o escritor Tom Cardoso pensou em fazer um perfil de Raul Seixas. Mas foi desencoraj­ado pelo colega jornalista Tarik de Souza.

Por isso, o prefácio de “Ninguém Pode com Nara Leão”, que chega agora às livrarias, foi escrito por Souza. “Ele me disse que ninguém aguentava mais falar de Raul Seixas e sugeriu a Nara”, conta Cardoso, que se lembra bem da definição do amigo para a cantora. “Uma mulher porreta!”

Naquele momento, há mais de três anos, Cardoso tinha uma visão estereotip­ada dela. “A cantora de bossa nova, a mocinha que ofereceu o apartament­o da família para que a turma se reunisse para criar o movimento. Ela ali, joelhinho bonitinho, frágil e tímida. Esse era o retrato. Mas fui descobrind­o uma mulher que era muito mais do que isso.”

O livro mostra Leão como uma mulher de vanguarda. Seus posicionam­entos e direções artísticas não eram planejados, mas guiados por uma inquietaçã­o que a levou a fazer o que queria, sem a preocupaçã­o de conseguir sucesso ou ser fiel a um movimento.

O trabalho de Cardoso não se propõe uma biografia completa. É um perfil narrativo e interpreta­tivo dos episódios que levaram a cantora a sair de sua timidez e criar uma casca artística que produziu uma artista sem amarras.

Ao reproduzir os caminhos de Leão, o livro fala da transição do samba canção para a bossa nova e, depois, para a tropicália. Nessa trajetória, ela se envolve com o pessoal do cinema novo e do Centro Popular de Cultura, o CPC, foco de resistênci­a criado na União Nacional dos Estudantes.

As pesquisas do autor reforçam o equívoco de atribuir uma possível saída de Leão da bossa nova ao rompimento com Ronaldo Bôscoli, que a traiu com Maysa em 1961. O relacionam­ento dos dois estava ruindo e ela procurava novos rumos musicais.

Em seu primeiro disco, “Nara”, de 1964, ela gravou samba do morro, mas, segundo Cardoso, continua sendo um disco de bossa nova. “É uma leitura que mistura as duas coisas. E nos shows ela seguiu cantando coisas de Bôscoli, Roberto Menescal e Tom Jobim.”

O livro começa com um dos episódios mais notórios da vida de Leão, que era sua desavença com Elis Regina. Elas se odiavam e não escondiam isso. Cardoso relata as brigas por destaque dentro da TV Record nos anos 1960, emissora em que ambas eram contratada­s. “Elis invejava a liberdade da Nara, o jeito low profile, sem estar preocupada em fazer sucesso. Ela já nasceu no meio, convivia com o pessoal da bossa nova. Elis vinha do Sul, tinha que batalhar seu espaço, sofria outra exigência.”

“Nara falou mal da bossa nova, de Tom e de Vinicius, mas se arrependeu, terminou a vida regravando bossa nova”, diz Cardoso. “No comportame­nto, ela era muito na dela, tranquila, mas nas entrevista­s parecia uma doida. Era muito contundent­e.”

Ver a vida de Nara Leão ao longo dos anos 1960 é perceber um processo de empoderame­nto. “Entre os machos alfa que frequentav­am o apartament­o de sua família, ela era tratada como uma bonequinha, não a deixavam cantar. Mas então ela se aproximou da turma do cinema novo e do CPC, onde teve seu lugar”, conta Cardoso, o biógrafo.

A conscienti­zação política de Nara Leão se acelerou. Ela foi gravar sambas de temática social. Seu segundo álbum, “Opinião de Nara”, de 1964, inspirou diretament­e o maior espetáculo musical da época, “Opinião”, que foi combatido pelo regime militar.

“Muita gente acha que o disco dela veio depois do musical, mas é o contrário”, diz o autor. “Era uma menina da zona sul carioca inspirando os caras do CPC a ponto de dar nome ao espetáculo!”

Em 1966, ela deu entrevista ao Diário de Notícias dizendo que o Exército brasileiro não servia para nada e deveria ser extinto. “A declaração gerou uma movimentaç­ão da classe artística para tentar proteger a Nara”, afirma Cardoso. Depois, já casada com o cineasta Cacá Diegues, pai de seus dois filhos, eles passaram uma temporada na Itália, fugindo de uma prisão que não tardaria.

O biógrafo destaca que a posição desafiador­a de Nara Leão era mais artística e intelectua­l do que comportame­ntal. “Ela não era Leila Diniz, que ia grávida à praia. Nara não usava drogas. Sua transgress­ão era musical. Sua inquietaçã­o fez com que nunca gravasse exatamente o disco que todos estavam esperando.”

O livro segue também o período em que ela decidiu dar mais tempo aos filhos, ficou afastada dos shows e passou a cursar psicologia. Nos anos 1980, teve dores de cabeça, desmaios e confusão mental. Tinha um tumor no cérebro.

Com sua morte em 1989, aos 47 anos, Nara Leão deixou um legado de integridad­e artística que Tom Cardoso destaca. “Ela acabou tendo controle sobre a carreira, gravou só o que quis, sem interferên­cia de executivos ou produtores. Quando lançou um disco com canções de Roberto e Erasmo, antes de muita gente fazer o mesmo, ela tomou pau de todo mundo.” Definitiva­mente, a vida de Nara Leão se confunde com a MPB.

Ela ali, joelhinho bonitinho, mulher frágil e tímida. Esse era o retrato. Mas fui descobrind­o uma mulher que era muito mais do que isso

Elis invejava a liberdade da Nara, o jeito low profile, sem estar preocupada em fazer sucesso

Nara falou mal da bossa nova, de Tom e de Vinicius, mas se arrependeu

Entre os machos alfa que frequentav­am o apartament­o de sua família, ela era tratada como uma bonequinha, não a deixavam cantar

Ela não era Leila Diniz, que ia grávida à praia. Nara não usava drogas. Sua transgress­ão era musical

Ela acabou tendo controle sobre a carreira, gravou só o que quis, sem interferên­cia de executivos ou produtores

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Divulgação A cantora Nara Leão no Arpoador, no Rio de Janeiro, em retrato de 1963

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