Mulher de vanguarda
Biografia revela como Nara Leão foi além da mocinha frágil nos primórdios da bossa nova e fez de sua inquietação um ato de vanguarda
Biografia de Nara Leão desfaz estereótipo de mocinha frágil e tímida colado à cantora para mostrar uma artista sem amarras, que transgredia musicalmente, politizada e de opiniões contundentes.
são paulo Autor de biografias saborosas sobre personagens como o jornalista Tarso de Castro, que fundou o Pasquim, ou o politizado jogador Sócrates, o escritor Tom Cardoso pensou em fazer um perfil de Raul Seixas. Mas foi desencorajado pelo colega jornalista Tarik de Souza.
Por isso, o prefácio de “Ninguém Pode com Nara Leão”, que chega agora às livrarias, foi escrito por Souza. “Ele me disse que ninguém aguentava mais falar de Raul Seixas e sugeriu a Nara”, conta Cardoso, que se lembra bem da definição do amigo para a cantora. “Uma mulher porreta!”
Naquele momento, há mais de três anos, Cardoso tinha uma visão estereotipada dela. “A cantora de bossa nova, a mocinha que ofereceu o apartamento da família para que a turma se reunisse para criar o movimento. Ela ali, joelhinho bonitinho, frágil e tímida. Esse era o retrato. Mas fui descobrindo uma mulher que era muito mais do que isso.”
O livro mostra Leão como uma mulher de vanguarda. Seus posicionamentos e direções artísticas não eram planejados, mas guiados por uma inquietação que a levou a fazer o que queria, sem a preocupação de conseguir sucesso ou ser fiel a um movimento.
O trabalho de Cardoso não se propõe uma biografia completa. É um perfil narrativo e interpretativo dos episódios que levaram a cantora a sair de sua timidez e criar uma casca artística que produziu uma artista sem amarras.
Ao reproduzir os caminhos de Leão, o livro fala da transição do samba canção para a bossa nova e, depois, para a tropicália. Nessa trajetória, ela se envolve com o pessoal do cinema novo e do Centro Popular de Cultura, o CPC, foco de resistência criado na União Nacional dos Estudantes.
As pesquisas do autor reforçam o equívoco de atribuir uma possível saída de Leão da bossa nova ao rompimento com Ronaldo Bôscoli, que a traiu com Maysa em 1961. O relacionamento dos dois estava ruindo e ela procurava novos rumos musicais.
Em seu primeiro disco, “Nara”, de 1964, ela gravou samba do morro, mas, segundo Cardoso, continua sendo um disco de bossa nova. “É uma leitura que mistura as duas coisas. E nos shows ela seguiu cantando coisas de Bôscoli, Roberto Menescal e Tom Jobim.”
O livro começa com um dos episódios mais notórios da vida de Leão, que era sua desavença com Elis Regina. Elas se odiavam e não escondiam isso. Cardoso relata as brigas por destaque dentro da TV Record nos anos 1960, emissora em que ambas eram contratadas. “Elis invejava a liberdade da Nara, o jeito low profile, sem estar preocupada em fazer sucesso. Ela já nasceu no meio, convivia com o pessoal da bossa nova. Elis vinha do Sul, tinha que batalhar seu espaço, sofria outra exigência.”
“Nara falou mal da bossa nova, de Tom e de Vinicius, mas se arrependeu, terminou a vida regravando bossa nova”, diz Cardoso. “No comportamento, ela era muito na dela, tranquila, mas nas entrevistas parecia uma doida. Era muito contundente.”
Ver a vida de Nara Leão ao longo dos anos 1960 é perceber um processo de empoderamento. “Entre os machos alfa que frequentavam o apartamento de sua família, ela era tratada como uma bonequinha, não a deixavam cantar. Mas então ela se aproximou da turma do cinema novo e do CPC, onde teve seu lugar”, conta Cardoso, o biógrafo.
A conscientização política de Nara Leão se acelerou. Ela foi gravar sambas de temática social. Seu segundo álbum, “Opinião de Nara”, de 1964, inspirou diretamente o maior espetáculo musical da época, “Opinião”, que foi combatido pelo regime militar.
“Muita gente acha que o disco dela veio depois do musical, mas é o contrário”, diz o autor. “Era uma menina da zona sul carioca inspirando os caras do CPC a ponto de dar nome ao espetáculo!”
Em 1966, ela deu entrevista ao Diário de Notícias dizendo que o Exército brasileiro não servia para nada e deveria ser extinto. “A declaração gerou uma movimentação da classe artística para tentar proteger a Nara”, afirma Cardoso. Depois, já casada com o cineasta Cacá Diegues, pai de seus dois filhos, eles passaram uma temporada na Itália, fugindo de uma prisão que não tardaria.
O biógrafo destaca que a posição desafiadora de Nara Leão era mais artística e intelectual do que comportamental. “Ela não era Leila Diniz, que ia grávida à praia. Nara não usava drogas. Sua transgressão era musical. Sua inquietação fez com que nunca gravasse exatamente o disco que todos estavam esperando.”
O livro segue também o período em que ela decidiu dar mais tempo aos filhos, ficou afastada dos shows e passou a cursar psicologia. Nos anos 1980, teve dores de cabeça, desmaios e confusão mental. Tinha um tumor no cérebro.
Com sua morte em 1989, aos 47 anos, Nara Leão deixou um legado de integridade artística que Tom Cardoso destaca. “Ela acabou tendo controle sobre a carreira, gravou só o que quis, sem interferência de executivos ou produtores. Quando lançou um disco com canções de Roberto e Erasmo, antes de muita gente fazer o mesmo, ela tomou pau de todo mundo.” Definitivamente, a vida de Nara Leão se confunde com a MPB.
Ela ali, joelhinho bonitinho, mulher frágil e tímida. Esse era o retrato. Mas fui descobrindo uma mulher que era muito mais do que isso
Elis invejava a liberdade da Nara, o jeito low profile, sem estar preocupada em fazer sucesso
Nara falou mal da bossa nova, de Tom e de Vinicius, mas se arrependeu
Entre os machos alfa que frequentavam o apartamento de sua família, ela era tratada como uma bonequinha, não a deixavam cantar
Ela não era Leila Diniz, que ia grávida à praia. Nara não usava drogas. Sua transgressão era musical
Ela acabou tendo controle sobre a carreira, gravou só o que quis, sem interferência de executivos ou produtores