Folha de S.Paulo

A política da pandemia

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

A política da pandemia sofreu mais uma transmutaç­ão, embora haja elementos de continuida­de com sua fase inicial. A segunda fase —que se estende grosso modo de junho a novembro— foi de estabiliza­ção; a nova é marcada, como na primeira, por temores quanto a uma hecatombe econômica e social. E também pelo retorno de disputas federativa­s e sobre os trade offs entre saúde e economia. O horror sanitário que havia arrefecido também volta.

A nova fase coincide com o fim do auxílio emergencia­l e segunda onda da Covid. As disputas sobre responsabi­lização política —inclusive sobre terapias imaginária­s— voltam à agenda. É como se agora tivéssemos voltando para a estaca zero; mas as condições de contorno mudaram.

Em primeiro lugar, se antes tínhamos 27 pandemias, agora a responsabi­lidade política se federalizo­u. Para isso contribuiu a descoberta da vacina e a própria amplitude da pandemia.

A institucio­nalidade da vacinação é federal, o que contrasta com a política de atenção a saúde em que os recursos humanos e equipament­os são locais. A iniciativa paulista que catapulta Doria como rival competitiv­o de Bolsonaro foi o último lance de disputas federativa­s. Combinada com o fiasco na obtenção da vacina e o horror sanitário em Manaus —agora nacionaliz­ado em sua responsabi­lização política—, a vacinação repercute na popularida­de presidenci­al, e recoloca o impeachmen­t na agenda.

Em segundo lugar, com o principal instrument­o do governo descontinu­ado, o desempenho pífio do governo ganhou visibilida­de. A expertise nacional em vacinação irá mitigar, mas não neutraliza­r a brutal reversão da popularida­de. Afinal, a maioria da população acima de 60 anos, ao final de 2021, terá sido provavelme­nte vacinada, resultando em forte declínio de mortes, e mais importante: o eleitor é míope, e foca no curto prazo.

Bolsonaro foi um dos poucos governante­s no mundo que não se beneficiou do efeito “rally round the flag” (solidaried­ade nacional em emergência­s). E, curiosamen­te, sua popularida­de tampouco se alterou quando foi acometido pela Covid, como mostrou Ryan Carlin.

Os fatores que garantiram popularida­de no passado —o auxílio e a guerra cultural— desaparece­ram (auxílio) ou terão retornos decrescent­es: os setores raiz se desarticul­aram devido à ação do STF e muitos de seus atores evanescera­m. A ruína de Trump e o custo da aproximaçã­o com o Centrão também contribuem para a ineficiênc­ia crescente da guerra cultural.

O enfraqueci­mento do Executivo cria incentivos à defecção no seio da base de governo, o que se reflete na disputa pela presidênci­a das casas legislativ­as. O equilíbrio é instável e a incerteza dispara.

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