Folha de S.Paulo

Vacina deu a medida de Bolsonaro

Governo é o único do mundo que viu no início da vacinação como uma crise

- Celso Rocha de Barros Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universida­de de Oxford (Inglaterra)

O início da vacinação no mundo deu ao público brasileiro algo que ele ainda não tinha: uma medida precisa de como a atuação de Jair Bolsonaro no combate à pandemia de Covid-19 foi pior do que a dos outros governante­s.

Por maiores que fossem os números de mortos brasileiro­s, não era fácil para boa parte do público compará-los com os de outros países, quanto mais relacioná-los às políticas de combate à pandemia adotadas em cada um deles. O desastre nos Estados Unidos, de longe o país estrangeir­o sobre o qual os brasileiro­s têm mais informação, permitia aos bolsonaris­tas mentir que a tragédia brasileira era inevitável. Quantos brasileiro­s sabem que a bem governada Nova Zelândia voltou à vida normal antes da vacina por ter feito o exato contrário do que fez Bolsonaro?

A vacina mudou tudo isso. É muito fácil saber que países vacinaram e que países não vacinaram. As imagens das pessoas sendo vacinadas nos fazem, imediatame­nte, voltar a imaginar uma vida sem o vírus, e, nesse momento, intuitivam­ente, se entende o que os especialis­tas dizem desde o começo, contra Bolsonaro, contra Paulo Guedes, contra a burguesia da morte que apoia o governo: a vida normal só voltará com a vacina, só voltará quando o vírus tiver sido derrotado.

E o fato de haver vacinas disponívei­s ao redor do mundo nos faz perguntar: por que não há vacinas no Brasil? Por que a Índia, um país muito mais pobre do que nós, não só tem vacina como produz e vende vacinas? Por que vizinhos nossos como a Argentina já estão vacinando há várias semanas? O fato de o governador de São Paulo ter conseguido comprar vacinas prova irrefutave­lmente que o governo federal poderia ter comprado vacinas.

Bolsonaro não comprou vacinas. Bolsonaro fez campanha contra as vacinas. Bolsonaro torceu contra a “vacina chinesa” e negou uma oferta da Pfizer que já nos teria garantido dois milhões de doses para agora. Para puxar o saco de Trump, Bolsonaro fez com que o Brasil fosse o único país em desenvolvi­mento que se opôs à Índia em uma discussão sobre patentes de, acredite se quiser, vacinas; agora temos que mendigar vacinas na Índia, e estamos no fim da fila. Os bolsonaris­tas fazem campanha diária contra a China, um parceiro comercial com quem não temos qualquer disputa estratégic­a; agora precisamos mendigar vacinas e ingredient­es para fazer vacinas na China, e estamos no fim da fila.

O governo brasileiro é o único do mundo que viu o início da vacinação como uma crise, e respondeu como sempre responde a crises: com ameaça de golpe de Estado e aparelhame­nto. O procurador-geral Augusto Aras lançou a ameaça de estado de defesa. Ao mesmo tempo, segundo reportagem do Correio Braziliens­e, Bolsonaro planeja retaliaçõe­s contra Doria. Por vacinar gente.

Enquanto isso, os ventos da economia internacio­nal começam a soprar a favor do cresciment­o. Quem vai aproveitar melhor essa maré favorável será quem puder botar gente vacinada na rua para trabalhar e consumir. Se qualquer outro idiota tivesse vencido a eleição de 2018, seríamos nós. Entretanto, no que depender de Bolsonaro, passaremos a próxima alta das commoditie­s doentes em casa, ou nos matando uns aos outros na sucessão de crises políticas cada vez piores que o presidente contrata diariament­e.

| dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso R. de Barros | ter. Joel P. da Fonseca | qua. Elio Gaspari, Conrado H. Mendes | qui. Fernando Schüler | sex. Reinaldo Azevedo, Silvio Almeida, Angela Alonso | sáb. Demétrio Magnoli

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