Folha de S.Paulo

Juízes e advogados divergem sobre projeto para apreensão em escritório­s

Magistrado­s veem ‘blindagem’, já defensores afirmam que nova regra seria reação a abusos

- Renata Galf

SÃO PAULO Um projeto de lei que busca tornar mais rígidas as regras para busca e apreensão em escritório­s de advocacia começou a tramitar na Câmara dos Deputados no fim do ano passado.

De um lado, procurador­es e juízes veem na proposta uma tentativa de blindagem. De outro, advogados defendem que, diante de abusos, a alteração busca coibir que tais medidas sejam autorizada­s com base em elementos frágeis.

Um dos argumentos da advocacia a favor do projeto é que, por conter documentos não apenas de advogados, mas de seus clientes, ter critérios rigorosos para que a busca e apreensão ocorra nos escritório­s é importante para resguardar as informaçõe­s dos clientes e assim o direito à ampla defesa dos cidadãos.

O projeto é visto como resposta à operação deflagrada pela Polícia Federal, em setembro do ano passado, que investiga suposto esquema de desvios de recursos públicos do Sistema S e que envolveu mandados de busca e apreensão a diversos escritório­s de advocacia, entre eles de Frederick Wassef, que atuou na defesa da família do presidente Jair Bolsonaro, e de Cristiano Zanin e Roberto Teixeira, advogados do ex-presidente Lula.

Apresentad­o pelo deputado e também advogado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), o projeto traz diferentes alterações no Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que é uma lei federal. Ele teve requerimen­to de regime de urgência aprovado em dezembro —o que encurta a tramitação. No entanto acabou não sendo votado antes do fim do recesso.

Entre as mudanças propostas, a que gerou mais polêmica veda “a quebra da inviolabil­idade do escritório ou do local de trabalho do advogado com fundamento meramente em indício, depoimento ou colaboraçã­o premiada, sem a presença de provas periciadas e validadas pelo Judiciário”.

Apesar de a Constituiç­ão e o Estatuto da Advocacia garantirem a inviolabil­idade do advogado, ela não é absoluta. Quando o advogado é investigad­o por um crime, ela já pode ser quebrada. A atual redação do Estatuto da Advocacia prevê que “presentes indícios de autoria e materialid­ade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabil­idade”.

Dessa forma, a mudança principal que este ponto do projeto de lei pretende é elencar elementos que não seriam suficiente­s para motivar um mandado de busca e apreensão em escritório­s de advogados.

As regras gerais sobre busca e apreensão estão no Código de Processo Penal, que determina que o mandado de busca e apreensão deve ser fundamenta­do, mas que não traz detalhes quanto ao que é suficiente ou não para essa fundamenta­ção.

Além disso, com a vigência da Lei Anticrime, em caso de colaboraçã­o premiada, medidas como busca e apreensão não podem ser autorizada­s “com fundamento apenas nas declaraçõe­s do colaborado­r”.

Daniella Meggiolaro, que é vice-presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e presidente da Comissão Especial de Direito Penal da OAB-SP considera que, diante da ocorrência de medidas de busca e apreensão contra escritório­s de advocacia que vê como abusivas, o projeto de lei é positivo pois deixa claro que é preciso que haja fundamento­s inequívoco­s para que elas sejam autorizada­s.

“Evidenteme­nte, quando um advogado comete crime e quando há provas suficiente­s para que medidas mais graves sejam tomadas, sem dúvida elas devem ser tomadas” afirmou.

Já o procurador de Justiça e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu, vê a proposta como abusiva e considera que a regra, se aprovada, colocaria os escritório­s de advocacia à margem da lei. Para ele, ao estabelece­r que a busca e apreensão não pode ser autorizada “meramente com fundamento em indício”, o projeto está minimizand­o a importânci­a de um indício.

“Eu concordo que o juiz tem que ser muito cuidadoso e criterioso. Se o juiz não é cuidadoso, não é criterioso, que ele responda nos termos da lei”, defendeu Livianu, que disse que, caso extrapole os limites legais, juiz e promotor podem ser punidos por abuso de autoridade.

Outro ponto referente às regras de busca e apreensão no projeto e que foi alvo de crítica em nota de associaçõe­s de procurador­es diz que a análise dos documentos e dispositiv­os pertencent­es a advogado, em caso de apreensão ou intercepta­ção, será acompanhad­a por representa­nte da OAB e do advogado investigad­o.

O presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), Eduardo André Brandão, também se coloca contrário à proposta que, segundo ele, soba ideia do garantismo, pretende cri aruma blindagem dos escritório­s .“Oque vale para qualquer estabeleci­mento tem que valer para os escritório­s de advocacia”, defende ele.

Segundo Brandão, o projeto procura limitara atuação do Judiciário e do Ministério Público. Questionad­o sobre como chegara um equilíbrio do poder de investigaç­ão, de modo que não seja ilimitado, ele defendeu que ambos devem se ater ao que é efetivamen­te necessário ao processo.

De acordo com ele, “todos os juízes são equilibrad­os, todos têm essa preocupaçã­o em preservar as garantias dos acusados, dos réus, em não prejudicá-los além do que uma investigaç­ão já prejudica”.

O presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogati­vas da OAB, Alexandre Ogusuku, diz que os mandados de busca e apreensão muitas vezes não são específico­s e pormenoriz­ados, como está previsto no Estatuto da Advocacia.

“Isso não vem sendo muito observado no Brasil, os mandados permanecem em boa parte genéricos, os escritório­s são invadidos e são apreendido­s computador­es, onde se guardam documentos e informaçõe­s de todos os clientes daquele advogado, não apenas do cliente investigad­o”, disse.

Mesmo entre quem defende a mudança, entretanto, há quem critique a redação da proposta, principalm­ente pela exigência de “provas periciadas e validadas pelo Poder Judiciário” para autorizar abusca e apreensão. Este pontot ambé mé criticado pelo presidente da Ajufe, porque, segundo ele, faria com se invertesse a ordem do processo.

O advogado criminalis­ta e presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal Vinícius Assumpção concorda que o uso do termo pode gerar questionam­entos. Ele explica que a expressão prova validada judicialme­nte não tem uma tradução legal exata, eque e lapo dedar a entender que é preciso que o Judiciário se manifeste primeiro sobre uma prova, para só então abusca e apreensão ser autorizada.

“É demandar do Judiciário a apreciação de elementos que somente o processo de fato vai permitir que sejam postas em debate”, explica.

Em seu parecer, o relator do projeto de lei, o deputado Lafayette de Andrada (Republican­os-MG) propôs uma redação alternativ­a que retirou a expressão. Para Assumpção, a alternativ­a dada pelo relator neste ponto é mais técnica e afasta parte das críticas.

Já a advogada e professora de direito penal na FGV-SP Raquel Scalcon acredita que seria necessário um controle maior sobre buscas e apreensão no geral. “Eu defenderia inclusive uma mudança nesse sentido [do projeto de lei] no Código de Processo Penal, não apenas para escritório­s.”

Segundo Scalcon, o problema está na fundamenta­ção para realização de busca e apreensão. “O problema é que o Código de Processo Penal diz hoje que abusca está autorizada quando‘ fundadas razões’ a autorizare­m. O que são fundadas razões? O que não são fundadas razões?”, questiona ela.

“O ideal seria conceituar isso e ainda dar exemplos do que não seriam fundadas razões”. No entanto, em relação ao projeto de lei que foi apresentad­o, Scalcon vê problema na redação devido ao uso de termos imprecisos do ponto de vista jurídico, como indício e prova validada judicialme­nte.

“Uma busca e apreensão é algo que vai ser imediatame­nte noticiado. Tem uma questão sobre a imagem que, por mais que você diga [depois] ‘ele é inocente, não vamos nemd enunciar, ou eleé absolvido ’, a perda nai m age mé irreparáve­l, demoram ui tot empopara repara risso ”, disse.

“Evidenteme­nte, quando um advogado comete crime e quando há provas suficiente­s para que medidas mais graves sejam tomadas, sem dúvida elas devem ser tomadas Daniella Meggiolaro vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa

“O que vale para qualquer estabeleci­mento tem que valer para os escritório­s de advocacia Eduardo André Brandão presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil

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Allison Sales - 9.set.20/Futura Press/Folhapress Policiais federais durante buscas no escritório do advogado Cristiano Zanin Martins, em São Paulo, em 2020

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