O recibo chinês
Geopolítica da vacina só vai melhorar se Bolsonaro abolir campanha sinofóbica
O atraso da Índia no envio das vacinas para o Brasil, relatado na coluna da semana passada, tinha motivações essencialmente logísticas: Nova Déli precisava de atender demandas de parceiros regionais antes de responder aos apelos desesperados de Brasília.
Mas as explicações para a lenta humilhação infligida pela China encontram-se no domínio do simbólico.
Alçada à condição de potência global na última década, as autoridades chinesas deram prioridade ao combate do que entendem ser uma campanha para sujar o nome do país.
Com efeito, apesar de seu sucesso no controle da pandemia, a China viu a sua imagem degradar-se no mundo inteiro. Donald Trump e os seus aliados, muito ativos na denúncia de fatos reais, como a repressão dos uigures de Xinjiang, mas também imaginários, como o suposto envolvimento de autoridades chinesas na criação do coronavírus, são apontados como os principais responsáveis por essa situação paradoxal.
Horas depois da posse de Joseph Biden, a China impôs sanções a 28 membros do exgoverno norte-americano. Entre eles o ex-chefe da diplomacia Mike Pompeo e o extremista Steve Bannon, dois aliados essenciais do bolsonarismo.
Agora, o governo Xi Jinping quer terminar o trabalho.
A negociação em curso pelo abastecimento de vacinas entre Brasil e China é um embate diplomático entre um governo que pensa em dias e outro que pensa em décadas.
Os chineses são hábeis demais para cair na armadilha de impor condições mercantis e facilmente caricaturáveis, como a troca de vacinas por torres da tecnologia 5G.
Para eles, tudo se resume a uma questão de modos na mesa. A China quer projetar a imagem de força civilizatória no mundo e se recusa a trabalhar com lideranças políticas que endossaram as teses antichinesas racistas ou conspiratórias dos trumpistas.
Nenhuma das soluções ensaiadas por políticos brasileiros na semana passada está à altura da urgência da situação. A investida de personalidades da República, como governadores e até ex-presidentes, é até bem-intencionada, mas insuficiente.
A diplomacia paralela e as iniciativas conduzidas por órgãos subnacionais podem desbloquear questões pontuais, mas não são adequadas para solucionar um problema de segurança nacional como a campanha de imunização. Ninguém imagina o Brasil enviando um caminhão de cartolas para desbloquear cada contêiner parado no aeroporto por causa de um comentário fútil do Planalto.
Uma eventual troca de Ernesto Araújo ajudaria a melhorar a coordenação. O presidente teria dificuldade em encontrar outro cruzado para chefiar o Itamaraty. Embora coniventes com a destruição metódica da política externa brasileira, os diplomatas bolsonaristas não ousariam repetir o hara-kiri profissional do atual chanceler.
Mas a tensão persistiria. Pequim valoriza mais que tudo a cadeia de comando, e as redes bolsonaristas só silenciarão sua sinofobia quando receberem ordens vindas de cima. As dificuldades do Brasil na geopolítica da vacina só serão realmente superadas quando o comandante do Planalto decretar o fim da campanha anti-China.