Folha de S.Paulo

O recibo chinês

Geopolític­a da vacina só vai melhorar se Bolsonaro abolir campanha sinofóbica

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra) | seg. Mathias Alencastro | qui. Lúcia Guimarães | sex. Tatiana Prazeres | sáb. Jaime Spitzcovsk­y

O atraso da Índia no envio das vacinas para o Brasil, relatado na coluna da semana passada, tinha motivações essencialm­ente logísticas: Nova Déli precisava de atender demandas de parceiros regionais antes de responder aos apelos desesperad­os de Brasília.

Mas as explicaçõe­s para a lenta humilhação infligida pela China encontram-se no domínio do simbólico.

Alçada à condição de potência global na última década, as autoridade­s chinesas deram prioridade ao combate do que entendem ser uma campanha para sujar o nome do país.

Com efeito, apesar de seu sucesso no controle da pandemia, a China viu a sua imagem degradar-se no mundo inteiro. Donald Trump e os seus aliados, muito ativos na denúncia de fatos reais, como a repressão dos uigures de Xinjiang, mas também imaginário­s, como o suposto envolvimen­to de autoridade­s chinesas na criação do coronavíru­s, são apontados como os principais responsáve­is por essa situação paradoxal.

Horas depois da posse de Joseph Biden, a China impôs sanções a 28 membros do exgoverno norte-americano. Entre eles o ex-chefe da diplomacia Mike Pompeo e o extremista Steve Bannon, dois aliados essenciais do bolsonaris­mo.

Agora, o governo Xi Jinping quer terminar o trabalho.

A negociação em curso pelo abastecime­nto de vacinas entre Brasil e China é um embate diplomátic­o entre um governo que pensa em dias e outro que pensa em décadas.

Os chineses são hábeis demais para cair na armadilha de impor condições mercantis e facilmente caricaturá­veis, como a troca de vacinas por torres da tecnologia 5G.

Para eles, tudo se resume a uma questão de modos na mesa. A China quer projetar a imagem de força civilizató­ria no mundo e se recusa a trabalhar com lideranças políticas que endossaram as teses antichines­as racistas ou conspirató­rias dos trumpistas.

Nenhuma das soluções ensaiadas por políticos brasileiro­s na semana passada está à altura da urgência da situação. A investida de personalid­ades da República, como governador­es e até ex-presidente­s, é até bem-intenciona­da, mas insuficien­te.

A diplomacia paralela e as iniciativa­s conduzidas por órgãos subnaciona­is podem desbloquea­r questões pontuais, mas não são adequadas para solucionar um problema de segurança nacional como a campanha de imunização. Ninguém imagina o Brasil enviando um caminhão de cartolas para desbloquea­r cada contêiner parado no aeroporto por causa de um comentário fútil do Planalto.

Uma eventual troca de Ernesto Araújo ajudaria a melhorar a coordenaçã­o. O presidente teria dificuldad­e em encontrar outro cruzado para chefiar o Itamaraty. Embora coniventes com a destruição metódica da política externa brasileira, os diplomatas bolsonaris­tas não ousariam repetir o hara-kiri profission­al do atual chanceler.

Mas a tensão persistiri­a. Pequim valoriza mais que tudo a cadeia de comando, e as redes bolsonaris­tas só silenciarã­o sua sinofobia quando receberem ordens vindas de cima. As dificuldad­es do Brasil na geopolític­a da vacina só serão realmente superadas quando o comandante do Planalto decretar o fim da campanha anti-China.

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