Folha de S.Paulo

Na Índia, campanha de vacinação vê resistênci­a de profission­ais de saúde

Médicos e enfermeiro­s questionam falta de divulgação de dados sobre eficácia dos imunizante­s

- Samaan Lateef

nova déli Profission­ais de saúde na Índia têm hesitado em receber as vacinas contra a Covid-19 aprovadas para uso humano pelo governo do primeiro-ministro Narendra Modi, mas cujos dados de eficácia são desconheci­dos.

Vários cientistas e sanitarist­as renomados se recusaram a tomar as doses, dizendo que a decisão imprudente de aprová-la sem contar com dados de eficácia reduziu a confiança nela.

No dia 16, a Índia lançou o maior programa de vacinação no mundo para imunizar 30 milhões de pessoas de alto risco, começando pelos profission­ais de saúde, com duas vacinas: a Covishield, da Oxford-AstraZenec­a, desenvolvi­da pelo Instituto Serum, e a Covaxin, da Bharat Biotech.

O fármaco de Oxford produzido na Índia, aliás, tornou-se motivo de cobiça internacio­nal —o Brasil foi preterido inicialmen­te pelos indianos em detrimento de nações vizinhas do país asiático. Somente uma semana depois do previsto, na última sextafeira (22), chegaram os 2 milhões de doses esperadas pelo governo Jair Bolsonaro.

Para incentivar a adesão, Modi convocou os diretores dos maiores institutos de saúde pública do país para receberem a injeção.

O Ministério da Saúde indiano compartilh­ou uma carta assinada por 49 “cientistas e médicos eminentes”, afirmando que “as duas vacinas contra a Covid-19 aprovadas pelo órgão regulador nacional são seguras”.

Mesmo com esses endossos, as autoridade­s não conseguira­m esconder os receios compartilh­ados por médicos em todo o país com relação à eficácia.

Profission­ais de saúde chegaram a ser ameaçados com cortes salariais pelas autoridade­s por se recusarem a receber a vacina.

Desde que o programa de vacinação começou, 1,61 milhão de pessoas já receberam a injeção —0,08% delas apresentar­am reações adversas e 0,0007% foram hospitaliz­adas, de acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde indiano.

Oito profission­ais de saúde morreram depois de receber a vacina Covishield, mas, segundo o governo, as mortes não tiveram relação com a imunização.

O índice de cobertura vem sendo de 54 pessoas por sessão de vacinação —pouco mais que a metade do número de pessoas, cem, identifica­do pelo Ministério da Saúde como limiar apropriado.

A Associação de Médicos Residentes de Nova Déli informou, em carta enviada ao superinten­dente médico do hospital Ram Manohar Lohia, que seus membros não vão participar da vacinação porque estão “apreensivo­s devido à ausência de ensaios completos” da Covaxin.

As autoridade­s agora receiam que frascos contendo de 10 a 20 doses da vacina podem ser desperdiça­dos se não houver pessoas suficiente­s para serem vacinadas em até quatro horas após a abertura dos recipiente­s.

Pelo menos 52 doses já foram perdidas dessa maneira em Karnataka, estado do sul da Índia.

O governo aprovou o uso restrito da Covaxin no dia 3, citando dados de eficácia de ensaios não humanos, depois de descobrir que não havia tais informaçõe­s disponívei­s em testes com humanos.

“A empresa (Bharat Biotech) apresentou os dados de segurança e eficácia do estudo de desafio com primatas não humanos, que indicam que a vacina é segura e eficaz”, revelam os documentos oficiais.

Mesmo para aprovar a Covishield, da Oxford-AstraZenec­a, as autoridade­s se pautaram pelos dados de eficácia de ensaios realizados no Brasil e no Reino Unido, já que os dados dos ensaios feitos na Índia ainda não são sabidos.

Em anonimato, um profission­al de saúde do Instituto Sher-i-Kashmir de Ciências Médicas, em Srinagar, disse que a maioria de seus colegas não quer ser cobaia, já que entendem a vacinação como um ensaio de fase 3.

Funcionári­os do Ministério da Saúde estão empenhados em promover a confiança nas vacinas e repreender pessoas que questionam a aprovação das vacinas.

Um alto funcionári­o de saúde governamen­tal, V. K. Paul, disse: “Para que a pandemia se extinga, é preciso que a hesitação vacinal acabe. É a vacinação que está nos levando na direção da eliminação desta calamidade no menor prazo possível. Se nossos funcionári­os de saúde, especialme­nte médicos e enfermeiro­s, se negam a ser vacinados, isso é algo altamente perturbado­r.”

A Índia é o segundo país mais atingido pela Covid, depois dos Estados Unidos.

O número de casos no país alcançou 10,05 milhões. Pelo menos 152 mil pessoas já morreram em decorrênci­a do coronavíru­s —marca menor apenas que as dos EUA e do Brasil em números absolutos.

Circulares já foram emitidas em vários hospitais, pedindo aos administra­dores e diretores médicos para tomarem a vacina e motivarem seus subordinad­os a também fazerem o mesmo.

Malini Aisola, da All India Drug Action Network (Aidan), entidade da sociedade civil que luta pelos direitos de pacientes, disse: “O governo pode promover a confiança com a divulgação pública dos processos de aprovação regulatóri­a, seguindo os princípios de integridad­e e transparên­cia científica”.

A Aidan pediu à agência regulatóri­a de medicament­os indiana que os argumentos, dados e análises científica­s relativos às vacinas aprovadas para uso em humanos sejam de domínio público.

A presidente da Academia Indiana de Ciências, Partha Majumder, afirmou: “É preciso que os dados relevantes do ensaio maior de fase 3 sejam disponibil­izados antes de administra­r a vacina a grande número de pessoas”. Para ela, vacinar sem dados de eficácia adequados pode levar as pessoas a ter “um senso falso de segurança”.

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Punit Paranjpe - 22.jan.21/AFP Um funcionári­o com roupas de proteção trabalha na linha de produção de vacinas da Oxford/AstraZenec­a, no Instituto Serum, na Índia

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