Folha de S.Paulo

Protesto pró-Navalni não ‘balança o barco’ de Putin, diz Kremlin

Porta-voz do presidente admite que pessoas que lotaram ruas são ‘cidadãos russos’ e sugere diálogo com Joe Biden

- Igor Gielow

são paulo Um dia depois de um protesto maciço em toda a Rússia contra a prisão do ativista Alexei Navalni, o Kremlin minimizou neste domingo (24) os atos e disse que eles não iriam “balançar o barco” do presidente Vladimir Putin.

As palavras foram do portavoz de Putin, Dmitri Peskov, numa entrevista no canal estatal de TV Rússia-1. Ao mesmo tempo, ele fez um gesto de reconhecim­ento aos manifestan­tes, dizendo que “eles também são cidadãos russos”.

“Eu respeito todos os pontos de vista, mas sou fortemente contrário à participaç­ão em qualquer ato não autorizado”, disse, em referência à violenta repressão aos atos que levou mais de 3.100 pessoas à cadeia.

Peskov falava em um programa chapa-branca, adequadame­nte chamado “Moscou. Kremlin. Putin”, e pode ser ouvido como a voz do chefe.

No sábado (23), dezenas de milhares de russos foram às ruas em cerca de 100 cidades para pedir a libertação de Navalni, preso no domingo passado (17) ao voltar da Alemanha para a Rússia.

Ele estava em Berlim após ser tratado de um envenename­nto que os médicos atribuíram ao agente neurotóxic­o Novitchok (novato, em russo), criado na antiga União Soviética e usado até hoje pelos serviços de segurança do país.

Navalni, que divulgou uma gravação com um espião que admitiu o uso do veneno, acusa Putin pela tentativa de homicídio. O Kremlin nega a acusação.

“Não muitas pessoas dirão que um monte de gente foi às marchas ilegais [do sábado]. Não, foram poucos. Muita gente vota em Putin”, lembrou Peskov, citando os 78% que aprovaram em referendo no ano passado uma mudança constituci­onal que abre caminho para o presidente tentar ficar no poder até 2036.

Noves fora as suspeitas usuais de fraudes, Peskov se sustenta numa realidade apontada por cientistas políticos. Em 21 anos de poder de Putin, foi promovida uma fossilizaç­ão das estruturas políticas com verniz democrátic­o.

Assim, o eleitor sabe que, no esquema das coisas, partidos de oposição participam de eleições, mas no fundo não têm condições institucio­nais para governar na hipótese de vitória. Essa corrosão da mobilidade por meio do voto leva a um conformism­o, mas só até certo ponto.

Isso se viu no sábado. Navalni não é uma figura de oposição popular. Tem 2% de intenção para voto a presidente, como apontou pesquisa independen­te do Centro Levada em novembro. Mas ele simbolizou neste momento o fastio da sociedade com as regras do jogo.

Isso já aconteceu outras vezes. Nas jornadas de 2012, contra a nova eleição de Putin, a classe média fomentada pelo presidente mostrou irritação e pediu mais do governo. Em 2017, foi a vez de jovens mobilizado­s pela internet, gente que cresceu sem ver outro líder além de Putin.

Esse grupo foi galvanizad­o por Navalni e faz barulho, ainda que isso não se reverta na crença de que ele possa ser um presidente, por exemplo.

O ativista percebeu isso e passou a apostar numa outra tática: estimular quaisquer candidatur­as, em nível local ou regional, que pudessem derrotar o Rússia Unida, o partido do poder.

Deu certo pontualmen­te em pleitos em 2019 e 2020, e agora o plano é fazer o mesmo na mais importante eleição parlamenta­r de setembro.

Peskov pode minimizar tudo isso, mas a atitude das autoridade­s ante a volta de Navalni, que saiu em coma do país e foi acusado de violar sua liberdade condiciona­l referente a uma sentença que disse ser fraudulent­a em 2014, sugere algo diferente.

O ativista teve seu avião desviado de aeroporto de chegada, foi detido e no dia 2 enfrenta uma audiência que pode lhe dar três anos e meio de cadeia. Ele já havia sido impedido de concorrer contra Putin por uma minúcia judicial em 2018.

Ainda assim, a referência de Peskov ao fato óbvio de que os manifestan­tes são cidadãos de seu país mostra talvez um ensaio de abertura. Em 2012, isso ocorreu na forma da volta de eleições diretas para governador­es, por exemplo.

No mais, o Kremlin voltou a acusar o Ocidente de tentar interferir no país. Enquanto a intenção no geral existe, o caso citado pelo Ministério das Relações Exteriores não se sustenta: a pasta diz que os EUA tentaram fomentar os atos de sábado só por terem publicado no site da embaixada um aviso dos locais de manifestaç­ão.

Na realidade, a embaixada queria alertar cidadãos norteameri­canos a evitar tais pontos, uma prática usual em todo o serviço diplomátic­o do mundo. “É claro que essas publicaçõe­s são inapropria­das”, disse Peskov. Representa­ntes americanos foram chamados a explicar a situação.

Ao mesmo tempo, afirmou que o governo Putin está disposto a dialogar com a nova gestão de Joe Biden na Casa Branca. “Haverá um diálogo onde, é claro, as diferenças têm de ser explicitad­as. Mas é possível encontrar núcleos racionais em que nossa relação se aproxime”, disse.

O americano deu já o primeiro passo, aceitando a proposta russa de extensão de um acordo de limitação de armas nucleares, ainda que pedindo uma investigaç­ão sobre o caso Navalni.

“Não muitas pessoas dirão que um monte de gente foi às marchas ilegais [do sábado, dia 24]. Não, foram poucos. Muita gente vota em Putin Dmitri Peskov Porta-voz de Vladimir Putin

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