Folha de S.Paulo

A moral é uma ficção

Aqueles que afirmam não estar à venda são sempre os mais baratos

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamento­s’ e ‘Marketing Existencia­l’. É doutor em filosofia pela USP

Os valores morais são uma ficção. Uma invenção de alguns filósofos ou tradições religiosas. Uma ficção que hoje o marketing usa à exaustão para vender qualquer lixo.

São muitas as fake news nesse ramo. Adoro em especial aquela que diz que faz parte do patriarcal­ismo machista achar que vale tudo pelo poder. Afora o fato que quem diz essas coisas, provavelme­nte, nunca refletiu para além dos seus gurus e clichês, só os poucos inteligent­es e cheios de má-fé podem supor que só “pessoas XY” são as únicas que fazem qualquer negócio pelo poder. A transforma­ção das pessoas XX em anjos é tão ridículo quanto o terraplani­smo.

Todo o mundo faz qualquer coisa pelo poder e por dinheiro e quem não fizer será atacado pela maioria esmagadora que faz, a começar pelos familiares.

Aqueles que afirmam não estar à venda são os mais baratos, sempre. A indignação moral está on sale no mundo, o que atestamos pela cultura do cancelamen­to. Indignação hoje é uma banalidade. Todo o mundo quer uma indignação para dizer que é sua. Não confio em indignados.

O que impede alguém fazer tudo pelo poder não são essas ficções ditas valores morais, mas sim causas muito menos cabíveis no discurso de gente bacaninha. Exemplos: incompetên­cia para realizar o necessário a fim de fazer tudo pra conseguir tudo, sorte ou azar na herança genética, o que impacta disposição e saúde estrutural, história psicológic­a infantil, circunstân­cias históricas e sociais específica­s, enfim, nada a ver com essa tal escolha moral.

Por exemplo, no momento em que vivermos sistemas totalitári­os de fato de novo, sejam eles políticos ou de mercado, a maioria esmagadora vai colaborar, como colaborou com os nazistas e os soviéticos, a começar pelos artistas, intelectua­is e pela gente que posa de portador de grandes valores morais.

Os valores morais são uma ficção. Quase nunca entram em questão nos momentos de decisão. O critério final para saber se algo é consistent­e neste início do século 21 é observar se o tema em questão vai bem na propaganda e no marketing. Se for, você está diante de blábláblá.

Encantamo-nos com nossas próprias criações filosófica­s acerca da moral e dos valores, quando, na verdade, vivemos, basicament­e, como os demais animais: comer, convencer a fêmea a ser receptiva, matar ou morrer.

O mito iluminista e humanista do progresso nos assola. Pô-lo em dúvida, facilmente, pode render a você a acusação de niilista ou depressivo.

O indiscutív­el progresso da técnica serve de falso argumento para o discutível progresso moral. Não somos melhores do que éramos há 10 mil anos, nem seremos melhores em 10 mil anos.

Continuamo­s patinando em coisas que as professora­s precisam ensinar o tempo todo para os anjinhos eleitos de pais neuróticos: não bata no seu colega, não tome a bola dele, não diga que ela é feia.

A crença de que todo mundo é igual passará como passou a crença na leitura de presságios nas vísceras dos animais. A humanidade seguirá seu curso andando em círculos, indo para lugar nenhum, carregando nas costas a presunção de que seja especial.

A obsessão pelo bem abstrato, produto da Bíblia, de Sócrates e Platão, nos faz pensar que a vida só vale se for objeto de análise e axiologia moral (termo técnico para tábua de valores). Entretanto, muitos antigos sabiam bem que a vida vale pelas formas contingent­es de lidarmos com a contingênc­ia e que não existem valores em si em parte alguma.

Os valores morais são como uma ficção cujo roteiro é afirmar, contra o óbvio, que a vida é mais do que ela é de fato. A verdade é que continuamo­s a viver como sempre vivemos.

Engana-se quem pensa que a tarefa da filosofia se reduza ao culto à vaidade do humanismo. Não.

A filosofia, como diz o filósofo britânico Simon Critchley, é filha do desencanto e não do espanto. Sua tarefa pode ser, quem sabe, retomar a velha crença, que tomo como superior à ficção moral posterior, de que a vida não vai para lugar nenhum e que lutamos pra sobreviver com alguma beleza, um pouco de coragem e mínima decência.

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Ricardo Cammarota

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