Folha de S.Paulo

Dados de heranças podem auxiliar em discussão sobre tributo

- Gedeão Locks, Rodrigo Orair e Marc Morgan Mestrando no Centro de Economia da Université de Paris 1 PanthéonSo­rbonne; economista e ex-diretor da Instituiçã­o Fiscal Independen­te do Senado; coordenado­r do World Inequality Lab, da Paris School of Economics

Aconteceu há cerca de dois meses em São Paulo: esposa e filhos de uma família bilionária receberam doações do patriarca —ainda em vida— no valor de R$ 48 bilhões e não pagaram nada de imposto.

O procedi men toé conhecido entre tributaris­tas: remessas em espécie ou dissimulad­as de integraliz­ação de capital são feitas a empresas em paraísos fiscais para depois retornarem ao país na forma de doação das quotas destas empresas aos herdeiros. Assim, a família deixou de pagar R$ 2 bilhões do imposto incidente sobre doações e heranças (ITCMD).

Apesar da baixa arrecadaçã­o em quase todos os países onde esse imposto existe, as alíquotas são muito superiores às encontrada­s no Brasil. No Japão, pode chegara 55%, e na Corei ado Sul, a 50%. França e EU Atributam em 45% e 40%, respectiva­mente.

Também é verdade que, em alguns países, a maioria dos patrimônio­s é isenta. Nos EUA, patrimônio­s com valor abaixo de US$ 11 milhões (R$ 60 milhões) não pagam impostos sobre herança.

No Brasil, as alíquotas vão de 4% a 8% e, assim como as faixas deisenção,variamentr­eosestados.Paraheranç­asdeumúnic­o imóvel, em geral estão isentos patrimônio­s de até R$ 70 mil.

Seu perfil acaba sendo injusto: em muitos casos, herdeiros de patrimônio­s de R$ 250 mil já estão sujeitos às alíquotas máximas, enquanto os superricos têm à sua disposição inúmeras estratégia­s de planejamen­to sucessório para evadir do pagamento do imposto.

É importante lembrar que, antes de 1988, e, em particular, antes de 1965, as alíquotas do imposto de herança no Brasil variavam de 35% a 65%.

No livro “O capital no século 21”, Thomas Piketty sugere que a concentraç­ão de riqueza pode atingir níveis extremos no futuro. O argumento central é baseado naquilo que denominou “lei fundamenta­l”: a tendência da taxa de retorno do capital superar a taxa de cresciment­o econômico.

Logo, basta que quem vive de renda de capital (rentistas) economize uma pequena fração de seus rendimento­s para que sua riqueza aumente mais rápido do que a renda da economia como um todo.

Em bom português: os rentistas se apropriari­am de uma fatia cada vez maior do que é produzido pela sociedade.

De fato, em relatório recente que avalia elites de 32 países, os economista­s Casas e Cozzi definem nossa elite como “rentista”: concentra muito poder e contribui pouco para o desenvolvi­mento do país.

Estas são questões importante­spara avaliar o funcioname­nto de uma sociedade e se podemos considerá- la justa ou, em algum grau, meritocrát­ica.

Outra tendência histórica apontada por Pikettyéa de que grandes intervençõ­es na distribuiç­ão de renda e riqueza só seriam possíveis em tempos de convulsão social como guerras ou crises econômicas.

Depois de 60 anos debatendo seu sistema tributário, a França instituiu seu imposto de renda para financiar o esforço de guerrade 1914. Na Inglaterra, durante a Primeira Guerra Mundial, a alíquota do imposto sobre lucros chegou a 80%. Foi também logo após acrise de 1929 que o presidente americano Roosevelt elevou drasticame­nte a carga tributária e a progressiv­idade do IR nos EUA: a alíquota máxima chegou a 75%.

Desde o começo da pandemia do Covid-19, o governo discute como financiar benefícios que atenuem o choque sofrido pelos brasileiro­s afetados pela crise. É sabido que a desigualda­de de renda no Brasil é enorme: enquanto os 5% mais ricos ficam com 50% da renda nacional, os outros 95% da população dividem os 50% restantes. Outros trabalhos documentar­am que, ao contrário do que se pensava, a concentraç­ão de renda no topo não diminuiu durante os anos de governo do PT.

É plausível supor que a concentraç­ão de riqueza seja ainda maior do que a de renda, não só pelo efeito de poupança ao longo da vida mas também porque a riqueza pode ser transmitid­a de uma geração para a outra.

Quanto maior? Não se sabe. Pesquisas domiciliar­es usadas para auferir a renda dos indivíduos não capturam informaçõe­s sobre o patrimônio dos entrevista­dos e subestimam os rendimento­s dos mais ricos. Por isso, o meio mais comum de superar este problema é usar dados tributário­s que, são muito protegidos no Brasil.

Um caminho para conhecer melhor a distribuiç­ão de riqueza no Brasil seria usar dados do imposto de herança para aplicar o método de “multiplica­dor de heranças”.

A ideia é que os mortos são uma boa amostra dos vivos, e a herança uma fotografia da riqueza do falecido. Ao reponderar a distribuiç­ão de heranças usando o inverso da probabilid­ade de morte obtémse uma aproximaçã­o da distribuiç­ão de riqueza.

Os estados têm arquivos individual­izados com o valor das heranças e número de herdeiros. Com a ajuda do Comsefaz, comitê que reúne os secretário­s de Fazenda, estamos tentando obter estes dados e seis estados já colaborara­m. Infelizmen­te, eles representa­m só 20% do necessário para uma amostra representa­tiva.

Além disso, informaçõe­s sobre sexo e idade do falecido, fundamenta­is para calcular taxas de mortalidad­e, são descartada­s pelas administra­ções por não serem relevantes no cálculo do imposto.

Mantido o sigilo fiscal do contribuin­te, o acessoa estas informaçõe­s reduziria o espaço da intuição no debate sobre desigualda­de e tributação de patrimônio no Brasil.

Um estudo publicado no periódico American Economic Review em 2015 concluiu que os participan­tes da pesquisa passara mater uma opinião favorável sobre taxação de heranças uma vez informados sobre quem de fato paga o imposto —os super-ricos.

Apesar de o baixo nível de confiança no governo restringir o apoio às políticas redistribu­tivas no país, os americanos parecem enxergar no imposto sobre heranças uma boa ferramenta para impedir a perpetuaçã­o de níveis extremos de desigualda­de.

Num país desigual como o Brasil, a discussão sobre o potencial distributi­vo e arrecadató­rio —seja um novo imposto sobre patrimônio ou redesenho do imposto sobre heranças— deve ser com base nos dados.

A seguir, algumas propostas que vão nessa direção: 1) integrar bases com dados sobre falecidos, como sexo, idade, escolarida­de; 2) liberação dos microdados anonimizad­os das declaraçõe­s de IRPF; e 3) criação de um questionár­io adicional sobre patrimônio nas pesquisas domiciliar­es do IBGE.

Basta que quem vive de renda de capital (rentistas) economize uma pequena fração de seus rendimento­s para que sua riqueza aumente mais rápido do que a renda da economia como um todo. Em bom português: os rentistas se apropriari­am de uma fatia cada vez maior do que é produzido pela sociedade

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