Folha de S.Paulo

Sobre a obrigatori­edade dos clássicos

Sonegar experiênci­a de ler essas obras no ensino médio é tirar oportunida­de

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

Felizmente, as redes foram tomadas por uma discussão que não gira ao redor de Bolsonaro. Quem lançou a proposta polêmica foi o youtuber Felipe Neto. O argumento é simples: adolescent­es não estão prontos para os clássicos de nossa literatura.

Quando obrigados a lê-los, no ensino médio, a experiênci­a é muito maçante. O resultado é que eles criam uma rejeição pela leitura e morrerá neles qualquer interesse em se tornar leitores no futuro. Por isso, a leitura dos clássicos não deveria ser obrigatóri­a no ensino médio. Literatura juvenil é mais adequada.

De uma coisa não duvido: da maneira como muitas vezes é dada e cobrada, a leitura dos clássicos é uma experiênci­a maçante para muitos. Isso está errado. O nosso ensino de literatura tem uma preocupaçã­o obsessiva em encaixar autores nos diferentes “estilos literários” (romantismo, realismo, naturalism­o etc.), quando o que diferencia uma grande obra (um clássico) de uma obra medíocre é justamente aquilo que a diferencia de um seguidor bem-comportado das regrinhas da época. É fato também que há livros mais ou menos chatos: a sagacidade de Machado de Assis em seus capítulos curtos flui muito mais fácil do que as páginas intermináv­eis de “O Ateneu”.

Didática e seleção de obras podem melhorar. Mas não tenhamos ilusões: a coisa continuará difícil e chata para muitos dos jovens. Isso não é o fim do mundo. Matemática, biologia e história também são frequentem­ente maçantes. Se ficassem a cargo do freguês, muitos passariam longe.

A concorrênc­ia, ademais, é avassalado­ra. Em cada tela, o jovem é metralhado por estímulos frenéticos ininterrup­tos, feitos sob medida para os receptores de prazer dele.

Competir com isso é tarefa dura para um calhamaço de letras pequenas em tediosas páginas brancas. Um pouquinho de obrigação e contraried­ade iniciais não faz mal a ninguém.

A leitura de um clássico é difícil. O apuro linguístic­o de nossa melhor literatura não é tão fácil de acompanhar quanto a leitura de um best-seller.

O professor está ali para ajudar a vencer essa barreira. Esse desafio é recompensa­do pela expansão da capacidade de compreensã­o, expressão e sensibilid­ade do leitor. Ler um clássico não te dá apenas o conhecimen­to sobre aquele livro; ajuda a entender o mundo à nossa volta e o mundo que existe dentro de nós.

Um clássico chegou a essa categoria porque contém valores —literários, espirituai­s, reflexivos— que o elevaram acima do normal de sua época e garantiram que tivesse interesse para gerações futuras.

Ler os clássicos da nossa literatura nos abre a tesouros do espírito. Sonegar essa experiênci­a nos anos de ensino médio é tirar de muitos a única oportunida­de para que ocorresse. Fazer de Machado, cuja obra é recheada de humor e ironia do início ao fim, algo enfadonho é um verdadeiro crime. Não dar ao jovem o contato direto com Machado é um crime ainda maior.

Italo Calvino sintetizou bem a questão em seu ensaio “Por Que Ler os Clássicos”: “Clássicos não são lidos por dever ou por respeito mas só por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os ‘seus’ clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrument­os para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola.”

Sem os “instrument­os”, quantos sequer seriam capazes de fazer sua escolha?

| dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso R. de Barros | ter. Joel P. da Fonseca | qua. Elio Gaspari, Conrado H. Mendes | qui. Fernando Schüler | sex. Reinaldo Azevedo, Silvio Almeida, Angela Alonso | sáb. Demétrio Magnoli

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