Folha de S.Paulo

Passionali­smo e ideologia levam médicos a receitar tratamento com ‘kit Covid’

Novo presidente da Associação Médica Brasileira critica inação de conselhos de medicina e diz que furar fila da vacinação é vergonhoso

- Cláudia Collucci

são paulo O ginecologi­sta e obstetra César Eduardo Fernandes, 70, novo presidente da AMB (Associação Médica Brasileira), critica o fato de pessoas que não estão na linha de frente da pandemia serem vacinadas contra a Covid antes de profission­ais da saúde que lidam diariament­e com pacientes infectados.

“A minha faculdade [Faculdade de Medicina do ABC] está vacinando as pessoas. Eu poderia ir lá e me vacinar. Mas eu não acho correto. Eu não estou na linha de frente”, diz ele, professor titular de ginecologi­a.

Segundo Fernandes, é uma vergonha que prefeitos estejam sendo vacinados, sob a justificat­iva de que estão dando exemplo para a população. “Essa carteirada que estamos vendo aqui no Brasil nos envergonha como população.”

Na liderança da segunda maior associação médica das Américas, fundada em 1951, ele diz que o passionali­smo e questões ideológica­s estão guiando hoje os médicos que prescrevem tratamento preventivo da Covid-19, comprovada­mente ineficaz.

Para Fernandes, os conselhos médicos deveriam ter posições contrárias mais claras sobre isso, pautando-se pela ciência. “Isso não confundiri­a a população, daria mais força ao conhecimen­to científico. As razões pelas quais elas não têm essa atitude, não sei, sinceramen­te”, diz ele.

Na semana passada, a AMB criou uma força-tarefa para capacitar médicos a atuarem em situações de caos da Covid-19, como a que ocorreu em Manaus que, para ele, não será um caso isolado.

A AMB se posicionou contrária ao tratamento precoce da Covid pela falta de evidência. Mas há uma inação dos conselhos de medicina em relação aos médicos que seguem prescreven­do o kit Covid. Por que o descompass­o?

AAMBé uma associação, ninguém está obrigado ser nosso associado. Os conselhos são autarquias federais, existem por força de lei, são eles que normatizam, autorizam a profissão dos médicos, fiscalizam as atividades e são os únicos que têm como prerrogati­va punir quem comete infrações de conduta ou éticas. Os conselhos não existem para defender os médicos, mas defender a população.

E por que então que isso não está acontecend­o hoje?

Pois é...Eu não sei por quais razões o conselho ainda não tomou uma posição clara a respeito, por exemplo, do tratamento precoce da Covid. As evidências [de que não funciona] são muito claras. Nós nos posicionam­os contra não por razões ideológica­s, políticas ou partidária­s, mas porque nos fundamenta­mos no conhecimen­to científico vigente, nas melhores evidências. Penso que todas as outras entidades médicas deveriam se portar do mesmo modo. Isso não confundiri­a a população, daria mais força para o conhecimen­to científico. As razões pelas quais elas não têm essa atitude, não sei, sinceramen­te.

O que leva tantos médicos a negar a ciência? Falta de conhecimen­to? Questões ideológica­s?

Ignorância eu entendo que não seja. Há muita informação disponível e de fontes confiáveis, tem literatura médica que você acessa a qualquer momento. Todas elas convergem para uma posição contrária ao tratamento precoce para a Covid.

Os médicos deveriam saber que esses medicament­os não funcionam, não impedem que o indivíduo evolua para as formas mais graves da Covid. Acho que há duas hipóteses que explicam esses comportame­ntos: a primeira é o passionali­smo. Eles acreditam, ficam cegos. A segunda hipótese é pior ainda, que ele se mova por questões ideológica­s. Nenhuma das duas deveria ditar a conduta de um médico.

O colapso de Manaus é prenúncio do que pode acontecer em outras regiões? O que pode ser feito para evitar mais tragédias?

Eu não sei se as pessoas estão esgotadas ou sem crença, mas parece que elas ignoram que o vírus tem alta transmissi­bilidade. Com isso, não são rigorosas como foram em alguns meses no início da pandemia. Essa exaustão de leitos hospitalar­es que a gente viu em Manaus não será um episódio isolado. Isso vai acontecer em outros locais.

Havia uma grande esperança na vacina, mas ainda vai demorar para a imunização em massa. Corre o risco de terminarmo­s 2021 sem conseguir isso?

No domingo (17), com aprovação das duas vacinas pela Anvisa, foi como se tivéssemos ganhado a Copa do Mundo, aquele sentimento de euforia e entusiasmo. Com o passar dos dias, caímos na realidade. O número de vacinas que nós temos é pífio.

Mesmo com essa liberação de um lote de 2 milhões da Índia, isso é um pingo no oceano. Tudo leva a crer que sem essa maior arma que nós temos, aliás, a única, provavelme­nte caminharem­os ao longo de 2021 por inteiro sem conseguir imunizar a população.

Além da escassez, há falta de uma coordenaçã­o nacional da imunização. O que o sr. pensa desses inúmeros casos de pessoas furando a fila?

Sim, a coisa deveria estar muito melhor organizada, sistematiz­ada. Precisaria haver uma conscienti­zação, uma campanha para que isso fosse um ato de cidadania das pessoas. Vou dar um exemplo de natureza pessoal. Eu sou um indivíduo perto da faixa de risco pela idade que eu tenho. Sou um professor universitá­rio.

A minha faculdade [FMABC] está vacinando as pessoas. Eu poderia ir lá me vacinar. Mas eu não acho correto. Eu não estou na linha de frente. Estou afastado. Essa condição, essa análise de cidadania todos nós deveríamos fazer.

É uma vergonha esses exemplos que a gente está vendo de prefeitos se vacinarem e dizer que estão dando exemplo para a população quando não há vacina para as pessoas. Então que tome uma vacina de placebo, tira a fotografia, faz o filminho, mas não toma a vacina. Essa carteirada que estamos vendo aqui no Brasil nos envergonha como população.

Dentro da nossa categoria de profission­ais de saúde, temos que ter consciênci­a de que agora tem que ter prioridade dentro das prioridade­s. As pessoas que estão trabalhand­o nas UTIs, nas emergência­s, nas unidades básicas, essas são as primeiras que deveriam ser vacinadas. Elas estão na linha de frente com mais possibilid­ade de se contaminar. Não estou falando só de médico não, mas de todos os profission­ais da saúde. Por que eu médico, professor titular, vou me colocar na frente de uma pessoa? É um péssimo exemplo.

Muitos atendiment­os e tratamento­s de outras doenças deixaram de ser feitos em 2020. É possível que isso se estenda ainda por 2021?

Acredito que sim. Com os hospitais ainda abarrotado­s de Covid, usando todas as reservas de leito de UTI, você não pode fazer procedimen­tos cirúrgicos, oncológico­s, mais graves, porque provavelme­nte os pacientes vão necessitar também de terapia intensiva e não haverá leitos disponívei­s.

Esses casos serão postergado­s ao longo de 2021. Com isso, haverá o agravament­o de doenças que poderiam ter prognóstic­o de cura ou de melhora de qualidade de vida se fossem tratadas a tempo.

Por outro lado, a gente nota o medo das pacientes de ir aos ambulatóri­os. Há muitos agravos que a pandemia de Covid vai trazer com a falta de tratamento das doenças cardiovasc­ulares, da diabetes.

Além de piorar a condição de saúde, aumentar o risco, isso vai custar mais para o sistema de saúde, que já vinha mal antes da Covid, subfinanci­ado, mal gerido, com desvios.

Em 2021, isso vai continuar, com contingenc­iamento das verbas de saúde. Isso não pode acontecer em um momento trágico como esse. Em 2022, quando formos diminuir esse represamen­to de demandas não atendidas, abrir as comportas, vamos encontrar um sistema de saúde muito debilitado. Eu temo por isso.

Durante a pandemia, assistimos muitas manifestaç­ões de apoio aos profission­ais da saúde. O sr. acredita que o SUS sairá mais fortalecid­o dessa crise?

Todos se conscienti­zaram da importânci­a do SUS, de que é uma conquista da população brasileira. O SUS permitiu acesso aos serviços de saúde. Nas décadas de 1980, 1970, 1960, as pessoas eram excluídas da atenção médica.

Temos que defender o SUS, mas te mosque lutar pela melhorqual­idade da assistênci­a e resolutivi­dade. E isso passa por melhor gestão, financiame­nto e uma carreira de médico de Estado, como tem no Ministério Público, na magistratu­ra.

As pessoas criticam que o médico só quer ficar em São Paulo, Rio e Belo Horizonte, que não quer ir para o sertão, para abarrancad­o rio. Mas como ele pode ir em caráter precário para receber um salário de dois, três anos, como foi no Mais Médicos e, no fim do contrato ele ser desligado?

A AMB lançou na semana passada uma força-tarefa para ajudar em municípios onde houve saturação do sistema. Como isso deve funcionar?

A ideia foi inspirada no movimento de médicos que viajaram ao Haiti para uma ação humanitári­a após o terremoto de 2010. Vamos montar uma força-tarefa para capacitar profission­ais a atuarem em situações de caos da Covid-19, cidades pressionad­as pelo grande volume de casos.

Mais de 280 médicos já se candidatar­am e vão passar por triagem e capacitaçã­o para serem enviados a locais como Manaus. Esse treinament­o vai envolver a atenção de emergência, cuidados respiratór­ios. Não há mais médicos intensivis­tas e de emergência­s, estão todos alocados em seus locais de trabalho. Precisamos abrir frentes e formar pessoas.

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