Folha de S.Paulo

O novo velho ‘normal’ do futebol

Futebol brasileiro aceita ameaça a atletas e só responde com nota de repúdio

- Renata Mendonça Jornalista, comenta na Globo e é cofundador­a do Dibradoras, canal sobre mulheres no esporte

Imagine a seguinte situação: você sai de casa para o trabalho e, no caminho, seu carro é alvo de um ataque. Pessoas que você não conhece jogam pedras na sua direção, o xingam, trazem pedaços de pau e fazem ameaças. Você consegue desviar delas e chega ao escritório, é dia de uma reunião importante. Você conseguiri­a trabalhar depois de tudo isso?

Essa situação parece absurda e dificilmen­te aconteceri­a na vida de um trabalhado­r comum. Agressão, ameaça, intimidaçã­o não podem ser considerad­os “ossos do ofício”.

Mas, no futebol, são. No último sábado, o ônibus que levava os jogadores do São Paulo para o Morumbi antes da partida contra o Coritiba foi alvo de uma emboscada de torcedores. Há relatos de que jogadores se abaixaram para não serem atingidos pelas pedras que eram jogadas nos vidros das janelas. Explosivos também foram encontrado­s no local.

Nada mudou na rotina daquele dia. Os jogadores foram para o jogo, entraram em campo normalment­e e foram elogiados pelo “profission­alismo”.

“Os jogadores foram muito profission­ais, trabalhara­m muito e tentaram ganhar o jogo. Apesar do que aconteceu eles foram profission­ais e foram muito unidos no jogo de hoje”, afirmou o técnico Fernando Diniz na entrevista pós-jogo.

Isso leva à interpreta­ção de que entrar em campo depois de um ataque como esse que sofreram os jogadores do São Paulo é ser profission­al. Como se a eles coubesse apenas cumprir as obrigações do emprego, independen­temente das condições em que tivessem de fazer isso.

A verdade é que, no futebol, a gente se acostumou com o absurdo. Tanto, que ele virou normal. O novo velho normal do futebol brasileiro, que segue aceitando jogadores intimidado­s, ameaçados, agredidos, na rua, no aeroporto, no CT. Tudo isso vira apenas nota de repúdio. E segue o jogo.

Aconteceu em 2009, quando o Palmeiras viveu situação parecida: era líder do Brasileiro, teve queda de rendimento (e de posições na tabela), e o ônibus da delegação foi atacado na estrada após um jogo. O atacante Vagner Love foi agredido na porta de um banco.

Aconteceu em 2020, quando o Corinthian­s acumulou maus resultados, e torcedores ameaçaram jogadores no aeroporto. E também quando torcedores do Figueirens­e invadiram o CT para agredir o time. Teve invasão no Vasco. Aconteceu já em 2021, quando flamenguis­tas cercaram jogadores na chegada ao treino. E agora, com o ataque ao ônibus do São Paulo.

A impressão que tenho é de que aceitamos essas situações com mais naturalida­de do que deveríamos. Depois de tudo isso, o jogo aconteceu. Os jogadores entraram em campo. A gente repudia, mas analisa a partida, fala de desempenho, de tática, de um jogo que aconteceu horas depois de um ataque violento como esse.

Voltemos à situação inicial: é como se o seu chefe o cobrasse por uma participaç­ão ruim numa reunião importante depois de ter sido agredido no caminho para o trabalho.

Já ouvi relatos de ex-jogadores sobre as reuniões que os clubes permitiam entre elenco e torcedores. Ali, os atletas ouviam coisas como “eu sei onde sua mulher mora, onde seu filho estuda”. Tudo isso dentro das dependênci­as do próprio clube que autoriza as “conversas”. No episódio com o São Paulo, mesmo com a rota inédita do ônibus, torcedores sabiam onde encontrá-lo —coincidênc­ia?

Se situações assim seriam absurdas em outras profissões, elas também não podem ser toleradas no futebol. Não dá para seguir o jogo, quando os protagonis­tas dele estão ameaçados.

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