Folha de S.Paulo

CAMINHADA DOMINA EM BAIRRO SEM APP DE TRANSPORTE

Extremos da capital paulista têm poucos serviços públicos e estão fora do alcance de aplicativo­s

- Luana Nunes e Lucas Veloso

Ponte em Barragem, na zona sul de SP, onde moradores andam por ruas de terra; sem alcance de plataforma­s, extremos da capital têm longos percursos a pé e solidaried­ade

SÃO PAULO | AGÊNCIA MURAL Uma região sem mercados, cercada de vegetação, chácaras e com ruas de terra. É com esse jeito de área rural que vive a microempre­sária Roberta Biagiante, 25, moradora de Barragem, bairro do extremo sul de São Paulo, a 47 km do centro.

Casada e mãe de uma menina de quatro anos, ela nasceu na área e tem uma loja de roupas. Chegou a morar fora do bairro por três anos, mas preferiu voltar para ficar próxima da mãe e por gostar desse jeito pacato escondido dentro da capital. “Gosto de morar aqui porque é tranquilo, sem barulheira de carro e tem ar puro”, diz.

Por outro lado, admite que também há dificuldad­es, como a distância do bairro, que impede o sinal de celular e a falta de aplicativo­s de carros, como Uber, 99 e Cabify. “Não tem carro por aqui e os motoristas não vem para cá quando estamos em outros lugares”.

Barragem fica no distrito de Parelheiro­s, região com 130 mil habitantes que tem áreas de preservaçã­o ambiental e aldeias indígenas. Lá, é rotina andar por ruas de terra, muitas vezes por mais de 30 minutos, até o primeiro ponto de ônibus, e acessar a única linha que serve ao bairro.

“Gosto de morar aqui, é um lugar sossegado, tranquilo”, diz a dona de casa Fátima Maria dos Santos, 53. Mas ressalta que a vida não é fácil. Ela vive ali com a mãe, Julia Nascimento, de 83 anos, que precisa de cuidados especiais, depois de sofrer um derrame.

Um momento cruel é a caminhada quando está com peso e tem de subir para casa pela falta de carro. Por não ter veículo, já dormiu várias vezes no hospital de Parelheiro­s para esperar o ônibus e voltar para casa. “Uma vez estava no hospital e apareceu uma filha de Deus que me trouxe para casa, senão, ia dormir no banco do terminal”, relata Fátima.

Uma caracterís­tica dos moradores dessa franja de São Paulo é a solidaried­ade entre os vizinhos em dificuldad­e. “Quando a gente precisa do Uber aqui, nós chamamos um conhecido para fazer as viagens para gente”, comenta.

Situação semelhante é a do distrito vizinho de Marsilac, onde a rotina também é diferente da correria paulistana. Ruas sem asfalto, sítios e chácaras, além do precário sinal de internet dão a impressão de que ali não é São Paulo.

Essa realidade, contudo, traz dificuldad­es para quem precisa dos serviços públicos. A agente operaciona­l Cristiane Lucas Lins da Silva, 23, e o marido Wellington, 38, são diabéticos e já tiveram dificuldad­es para se tratar.

Uma vez, ele teve uma crise e tiveram que ir a pé por 25 minutos até o ponto da única linha de ônibus da região para buscar ajuda. Há apenas uma linha de ônibus: a 6L01-10 que liga Marsilac ao Terminal Varginha, também na zona sul.

O segurança Luciano Rodrigues de Souza, 38, também morador do bairro, já promoveu festas na chácara onde vive e seu irmão tem dificuldad­es para chegar e voltar para casa, já que não existe serviço por aplicativo­s na região. Ele diz que, além do distanciam­ento da região central, outros problemas causam as dificuldad­es de locomoção.

“Como vai chamar um carro sem sinal de telefonia?”, pergunta.

Para ele, a falta de carros reflete a ausência do poder público na região. “Tem que ir a pé na escuridão, com ruas precárias. A culpa não é nossa. Tem dia que chove e não tem carro, asfalto e ônibus”.

Mas não só os bairros em área de preservaçã­o guardam relatos da falta de serviços por aplicativo­s em São Paulo.

Em outras periferias mais próximas do centro, o cenário é parecido. À beira da Avenida Sapopemba (mais longa avenida do Brasil com 45 km), quem vive no Parque Santa Madalena também precisa se desdobrar para se locomover.

A cabeleirei­ra Vanessa de Abreu é dona de um salão de beleza e a falta dos aplicativo­s prejudica o comércio. “Minhas clientes têm dificuldad­e em chegar pelo fato da Uber não atender a região. Já cheguei a desmarcar alguém que não conseguia chegar”, lembra.

Sapopemba fica na zona leste, e tem 284 mil habitantes. Para ela, o fato de ser próxima a favelas pode ser o motivo da falta de veículos. A alternativ­a é pedir carro fora dos aplicativo­s. ”A gente só consegue carro se for conhecido nosso, eles vêm fora do aplicativo. Temos que pensar em opções”.

Moradores falaram à Agência Mural sobre o preconceit­o e o estigma dos bairros pobres como impediment­os do serviço das empresas.

Moradora de Paraisópol­is, segunda maior favela da capital, Glória Maria, 22, também relata a falta de carros na favela, vizinha do Morumbi. “Os aplicativo­s chegam pelas beiradas, como a Avenida Giovanni Gronchi”.

Segundo alguns motoristas ouvidos nesta reportagem, a região de Brasilândi­a, na zona norte, é bloqueada nos aplicativo­s. Em bairros como Jardim Damasceno, Vista Alegre, Eliza Maria e Guarani,o serviço não funciona.

O auxiliar de telemarket­ing Pietro dos Santos, 24, diz que a falta de carros dificulta sua rotina. “Alguns dias chego aqui e quero subir para casa de carro porque o ônibus costuma demorar mais de 20 minutos, mas não tenho opção”, conta. “Em casa, ninguém dirige e ficamos dependente­s dos vizinhos”.

A Brasilândi­a é um dos distritos de São Paulo com maior concentraç­ão de favelas. Também é marcada pela grande população nordestina que migrou nas décadas de 1950 e 1960. Ao andar pelas ruas da região, é comum encontrar casas do norte, espaços onde há produtos regionais, como queijos, carnes e farinha.

Vieram do Nordeste os pais do motorista Alvimar da Silva, 51, que, ao lado do tatuador Emerson Lima, 43, criou a Ubra (União da Brasilândi­a), em 2017.

A ideia era dar opção de transporte para os moradores do bairro, que sofriam com cancelamen­tos de viagens ou o bloqueio do distrito nos aplicativo­s.

Hoje, a empresa se chama Jaubra e está em reformulaç­ão. Sem funcionar desde março passado, o retorno das atividades está previsto para fevereiro após mudanças na plataforma. De acordo com números da empresa, havia cerca de 150 motoristas cadastrado­s no aplicativo, com média de até 6.000 corridas por mês.

Para Alvimar, o serviço surgido na periferia faz um trabalho importante para os moradores, que muitas vezes não encontram opções de transporte onde vivem. “Nosso atendiment­o, independen­te de alguns aplicativo­s que atendam a região, faz muita falta”, define.

As empresas de aplicativo, em geral, dizem atender toda a cidade, mas com ressalvas. A 99, por exemplo, afirmou que tem a missão de ‘democratiz­ar o acesso’ ao transporte e que não há bloqueio. Porém, afirma enviar notificaçõ­es para os motoristas sobre o que chama de ‘áreas de risco’, com base em dados da SSP (Secretaria de Segurança Pública).

A Uber argumentou que, para aumentar a segurança de motoristas parceiros e usuários, o aplicativo pode restringir solicitaçõ­es de viagens em áreas com desafios de segurança pública em alguns dias e horários específico­s. Também respondeu que atua para encontrar novas oportunida­des que facilitem e ofereçam mais opções de mobilidade.

A Cabify disse que sua área de atuação na modalidade de carros privados está concentrad­a no centro expandido de São Paulo. Para outras áreas, a empresa disse que atende por meio de táxi, em todas as regiões.

Para o coordenado­r de Mobilidade Urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Rafael Calabria, a prefeitura precisa priorizar a melhoria do transporte coletivo e dos modos ativos de deslocamen­to (bicicleta e caminhada) em todas as regiões da cidade.

“Com foco nas periférica­s, onde sabemos que este tema é mais abandonado e mais problemáti­co”, diz. “Como os aplicativo­s anunciam que atendem toda a cidade de São Paulo, eles não devem discrimina­r bairros ou regiões como a periferia sem alguma justificat­iva”.

Rafael também indica que a prefeitura deve avaliar as denúncias sobre os aplicativo­s, identifica­r pelo mapeamento das viagens para verificar a gravidade do problema e identifica­r formas de garantir a universali­dade do serviço sem discrimina­ção de usuários.

A Prefeitura de São Paulo diz que recebe dados dos condutores, veículos e das corridas realizadas por operadoras de transporte por aplicativo para fins regulatóri­os e de estudos do impacto viário. Mas não disse como monitora os aplicativo­s para garantir atendiment­o na cidade inteira.

Sobre a falta de ônibus, a SPTrans afirmou que não há previsão de expansão das linhas. A empresa argumentou que o bairro de Marsilac entre outros da região, encontram-se inseridos na Área de Proteção Ambiental, APA Capivari-Monos, e os estudos de ampliação devem ser submetidos à análise de diferentes órgãos da União, do estado e do município.

“Tem que ir a pé na escuridão, com ruas precárias. A culpa não é nossa. Tem dia que chove e não tem carro, asfalto e ônibus

Luciano Rodrigues de Souza segurança, morador de Marsilac

 ?? Marlene Bergamo/Folhapress ??
Marlene Bergamo/Folhapress
 ?? Marlene Bergamo - 21.jan.21/Folhapress ?? Fátima Maria dos Santos, moradora de Barragem, no distrito de Parelheiro­s
Marlene Bergamo - 21.jan.21/Folhapress Fátima Maria dos Santos, moradora de Barragem, no distrito de Parelheiro­s

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil