Folha de S.Paulo

Aras é a antessala de Bolsonaro no TPI

Tribunal Penal Internacio­nal tem no procurador-geral a omissão de que precisa

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

Jurista leão de chácara é aquele que empresta vocabulári­o, gravata e biografia à violência. Não lhe falta vontade de servir e sujar as mãos. Regimes autocrátic­os alugam esse bando para organizar, sob o verniz do direito, a repressão e a mútua proteção. O lugar da profissão jurídica na história universal da infâmia política varia entre servidão e complacênc­ia. Descontada­s as exceções.

Augusto Aras integra o bando servil. Enquanto colegas de governo abrem inquéritos sigilosos e interpelam quem machuca imagem do chefe, Aras fica na retaguarda: omite-se no que importa; exibe-se nas causas minúsculas; autoriza o chefe a falar boçalidade­s mesmo que alimente espiral da morte sob o signo da liberdade.

Na sua teoria de Estado, presidente tem liberdade de infectar, incitar violência e praticar charlatani­smo da cura. Quando subprocura­dores, no início da crise, representa­ram para que o PGR recomendas­se ao presidente se abster de propagar mentira e desinforma­ção, arquivou. Alegou liberdade de expressão e citou precedente aleatório do STF.

Também entendeu que a conta de Bolsonaro no Twitter é privada, uma zona franca da delinquênc­ia presidenci­al onde pode agredir a China, celebrar cloroquina e bloquear usuário; que o presidente não pode ser investigad­o por ameaça a jornalista­s; que tem direito de se opor a medidas da política sanitária.

Aras não economiza no engavetame­nto de investigaç­ões criminais: contra Damares por agressão a governador­es; contra Heleno por ameaça ao STF; contra Zambelli por tráfico de influência; contra Eduardo Bolsonaro por subversão da ordem política ao sugerir golpe.

Aras não só se omite. Quando age, tem um norte: contra a lei, inviabiliz­ou que procurador­es enviassem recomendaç­ões de praxe ao Ministério da Saúde; contra a lei, recomendou a membros do MPF que não cobrassem gestores da saúde em caso de “incerteza científica”.

Nem vamos falar de como desmontou forças-tarefa de combate à corrupção para concentrar em si arsenal de informaçõe­s privadas com infinito potencial de intimidaçã­o.

Também faz blindagem processual de Bolsonaro: requisitou inquérito do porteiro que suscitou eventual elo entre família Bolsonaro e assassinat­o de Marielle; deu parecer contra as provas colhidas no inquérito das fake news no STF; contra a apreensão do celular presidenci­al; a favor de Flávio Bolsonaro em contradiçã­o com precedente do STF sobre foro privilegia­do.

Não parou: pediu rejeição da denúncia por corrupção que ele mesmo havia oferecido contra Arthur Lira, após este se aliar a Bolsonaro; viabilizou processo relâmpago contra o inimigo Wilson Witzel, governador afastado do Rio; deu parecer contra estabeleci­mento de prazo para presidente da Câmara posicionar-se sobre pedidos de impeachmen­t.

Poderia continuar, mas encerro a lista com a obstrução que promove diante das representa­ções por crime comum de Bolsonaro. Sob pressão, escreveu que estaríamos na “antessala do estado de defesa”. Não explicou a ameaça.

Diante da reação de outros procurador­es e à representa­ção criminal encaminhad­a contra ele mesmo ao Conselho Superior do MPF, resolveu “agir”. Abriu inquérito contra prefeito de Manaus e governador do Amazonas. Abriu outro contra Pazuello, que nunca escondeu sua vocação de obedecer. Não incluiu quem manda em Pazuello e assegurou que só se investigue crime de prevaricaç­ão, nenhum outro mais grave contra saúde pública.

Aras não se deixa constrange­r pela submediocr­idade verbal e teatral que floreia seu colaboraci­onismo. Aderiu à hermenêuti­ca declaratór­ia, fraude interpreta­tiva que atribui validade do argumento jurídico à autoridade de quem fala, faceta autoritári­a comum à magistocra­cia.

Aras é a antessala do fim do Ministério Público tal como desenhado pela Constituiç­ão de 1988. “A Constituiç­ão é o meu guia, a PGR não se move por interesses partidário­s.” A Constituiç­ão-guia de Aras é a ditatorial de 1967. Ali, o PGR era empregado do presidente.

Se contra Bolsonaro cabe um impeachmen­t Pró-Vida, contra Aras cabe um impeachmen­t Pró-MP.

Afinal, PGR também pode cometer crimes de responsabi­lidade. Seu repertório de omissões é tão holístico que prejudica Jair onde menos se espera: é a prova que o Tribunal Penal Internacio­nal exige de que instituiçõ­es domésticas se omitem e liberam o presidente para o crime.

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