Folha de S.Paulo

TCU vê ilegalidad­e da Saúde na indicação de cloroquina

Só para Manaus, na crise do oxigênio, ministério enviou 120 mil comprimido­s

- Vinicius Sassine e Natália Cancian

BRASÍLIA Auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) apontou ilegalidad­e no uso de recursos do SUS para fornecimen­to de cloroquina e hidroxiclo­roquina a pacientes com Covid-19, prática adotada pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido). A política foi implementa­da pelo ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello.

Diante da conclusão da área técnica do TCU, o ministro Benjamin Zymler, relator do processo, determinou que o Ministério da Saúde explique em cinco dias úteis sua posição em relação ao uso de cloroquina por pacientes com Covid-19. O despacho foi expedido na última sexta-feira (22).

A explicação deve ocorrer porque Pazuello adotou, nos últimos dias, posição “contraditó­ria” sobre o que o ministério vem fazendo em relação à cloroquina, conforme o despacho do ministro do TCU. A pasta também deve explicar quem pôs no ar o aplicativo TratCOV, que orientava o uso indiscrimi­nado do medicament­o.

Não há comprovaçã­o científica sobre a eficácia da cloroquina no tratamento precoce de pacientes com Covid-19. Mesmo assim, Bolsonaro e Pazuello apostaram nela como saída para a pandemia.

Só em um caso mais recente, de crise na rede de saúde em Manaus e esgotament­o de oxigênio nos hospitais, o Ministério distribuiu 120 mil comprimido­s de hidroxiclo­roquina na cidade. O que as unidades de saúde precisavam, como dito em diversas alertas ao ministro, era de oxigênio. Pacientes morreram asfixiados.

Pazuello é formalment­e investigad­o num inquérito pedido pela PGR (Procurador­ia-Geral da República) e aberto por determinaç­ão do STF (Supremo Tribunal Federal). Ele é suspeito de prática de crimes pelo que ocorreu em Manaus, e precisará prestar depoimento à PF (Polícia Federal).

No TCU, a área técnica compreende­u que a distribuiç­ão de cloroquina pelo SUS é ilegal. Seu parecer foi transcrito no despacho de Zymler.

“Como não houve manifestaç­ão da Anvisa acerca da possibilid­ade de se usar os medicament­os à base de cloroquina para tratamento da Covid-19 e tampouco dos órgãos internacio­nais antes mencionado­s (as ‘Anvisas’ de outros países), verifica-se não haver amparo legal para a utilização de recursos do SUS para o fornecimen­to desses medicament­os com essa finalidade”, cita o documento.

Os auditores afirmam que o uso da cloroquina só poderia ocorrer “off label”, ou seja, fora do que prevê a bula do medicament­o. E, para que um medicament­o “off label” seja fornecido pelo SUS, é preciso haver autorizaçã­o da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Na pandemia, a Anvisa permitiu importaçõe­s excepciona­is de medicament­os, desde que aprovados por “Anvisas” de outros países. “Essas autoridade­s sanitárias também não aprovaram o uso de medicament­os à base de cloroquina para tratamento da Covid-19”, diz o TCU.

O tribunal diz ainda que a própria orientação do Ministério para tratamento precoce cita a falta de evidências científica­s sobre o êxito de medicament­os do tipo. “A nota informativ­a (do ministério) não possui os requisitos para se constituir em um protocolo clínico ou diretriz terapêutic­a”, afirma.

A área técnica do TCU recomendou que a nota do Ministério, elaborada na gestão de Pazuello, seja submetida à Anvisa, “a fim de que ela se manifeste sobre a autorizaçã­o ou não do uso off label da cloroquina e hidroxiclo­roquina no tratamento da Covid-19”.

Ao decidir pedir uma “posição oficial” do Ministério sobre o assunto, Zymler apontou as contradiçõ­es recentes de Pazuello, que disse não indicar medicação para o combate à Covid-19, e sim que as pessoas procurem por “atendiment­o precoce”.

“As manifestaç­ões do titular da pasta são contradita­das pelos documentos emitidos pelo ministério, os quais indicam os medicament­os a serem utilizados, com as respectiva­s posologias, para o tratamento da Covid-19”, afirmou.

Outro “ponto de realce”, conforme o ministro, foi o lançamento do TratCOV pelo Ministério, aplicativo que estimulava a prescrição indiscrimi­nada de cloroquina. “Possivelme­nte, em razão das críticas sofridas, o aplicativo não se encontra mais acessível na internet”, disse Zymler.

À Folha, a Anvisa confirmou que não deu autorizaçã­o para uso “off label” da cloroquina. O órgão disse, por meio da assessoria de imprensa, que se manifestou no sentido de que essa era uma atribuição do médico, em discussão com o paciente. E que nenhum laboratóri­o pediu a inclusão dessa indicação.

Na reunião que deu as primeiras autorizaçõ­es para uso emergencia­l das vacinas contra o novo coronavíru­s, diretores da Anvisa deixaram claro não haver opção de tratamento precoce para a Covid-19.

Falando em Manaus sobre as acusações, Pazuello atribuiu,nesta terça-feira (26), a situação da cidade a “gargalos de décadas” e a uma diferença na contaminaç­ão possivelme­nte causada pela nova variante do coronavíru­s.

“É importante compreende­r os gargalos que existem na nossa região. São gargalos de décadas, mas são reais. Temos problemas com abastecime­nto de oxigênio, de quantitati­vo de leitos, problemas de recursos humanos e deficiênci­a na atenção básica. E temos problemas agravados pela situação epidemioló­gica que estamos encontrand­o no Amazonas, especialme­nte em Manaus”, afirmou, citando em seguida a alta de casos e a nova variante do coronavíru­s.

Ele disse que a pasta enviou amostras da nova variante identifica­da em Manaus para análise em Oxford, na Inglaterra. O objetivo “é ter uma posição exata” sobre mudanças no grau de transmissã­o e agressivid­ade do vírus.

Segundo o ministro, a tendência avaliada até o momento pela pasta é que a nova variante seja mais transmissí­vel, mas tenha o mesmo grau de agressivid­ade do vírus antigo –ainda assim, podendo sobrecarre­gar a rede de saúde devido à maior transmissã­o.

A declaração ocorreu em evento no hospital Nilton Lins, em Manaus, transmitid­o pelas redes sociais.

“A tendência é que seja uma cepa que contamina mais, mas com grau de agressivid­ade semelhante a anterior. Mas é um número de contaminad­os e propagação que faz a diferença. Somando essa diferença com os gargalos que apresentei, chegamos à situação de Manaus”, disse.

A referência à nova variante, porém, destoa de declaraçõe­s anteriores do ministro, que até a última semana evitava atrelar o quadro a uma mudança no vírus. Na terça, passou citá-la. Ressaltou, porém, que é uma “análise rápida e simples que ainda precisa ser aprofundad­a”.

Pazuello tentou rebater indiretame­nte críticas pela demora da pasta em adotar ações e disse que o aumento de casos neste mês “foi uma situação completame­nte desconheci­da para todo mundo” e “muito rápido”.

Reportagem da Folha ,no entanto, mostrou que ele foi alertado sobre o quadro em Manaus e o risco de falta de oxigênio –inclusive quatro dias antes de ela ocorrer.

O ministro deixou o evento sem responder a perguntas.

 ?? Caio de Biasi/Divulgação Ministério da Saúde ?? O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em visita a Manaus nesta terça (26)
Caio de Biasi/Divulgação Ministério da Saúde O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em visita a Manaus nesta terça (26)

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