Folha de S.Paulo

Negacionis­mo que mata

Tratamento precoce contra a Covid não trata e viabiliza mais mortes

- Atila Iamarino Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universida­de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia | dom. Reinaldo José Lopes, Marcelo Leite | qua. Atila Iamarino, Esper Kallás

Alguns dizem que tratamento precoce “não tem eficácia comprovada”. Mas essas terapias foram testadas e os estudos demonstrar­am que não funcionam. Tratamento precoce é comprovada­mente ineficaz e viabiliza mais mortes dando a impressão de que algo é feito. Mesmo assim, seguimos recomendan­do como política oficial de saúde no Brasil, em um negacionis­mo científico.

Quando muitos estudos com poucos pacientes são feitos em muitos centros, por simples acaso alguns deles podem apontar uma relação que não existe. Falsos experts promovendo tratamento escolhem a dedo estes poucos estudos que mostram benefícios. O mais adequado é se guiar pelos maiores estudos, com mais pacientes e maior poder estatístic­o, que são inequívoco­s: tratamento precoce não funciona. Tanto que a União Europeia e a OMS deixaram de testar a cloroquina ainda no primeiro semestre de 2020 e a OMS não recomenda e nem comenta sobre o uso de vermífugos e antiparasi­tários.

Alemanha e Reino Unido escolhem as medidas de fechamento que adotam de acordo com as dezenas de estudos que quantifica­ram quanto cada restrição de lockdown reduz a transmissã­o do vírus, e acompanham os resultados com testes. Israel adotou o terceiro lockdown severo e uma vacinação em massa, sabendo que fechar é só parte da estratégia, e já vê uma redução enorme de hospitaliz­ações.

No Brasil, o tratamento precoce dá para as pessoas a falsa segurança de que podem se expor à Covid, como se o kit Covid reduzisse os riscos da doença —comprovada­mente não reduz. Dá para aqueles que sofrem a impressão de que algo foi feito, quando o que precisaria ser feito é saneamento básico, rastreio de contatos e testes.

Uma olhada rápida no monitorame­nto do Duke Global Health Innovation Center mostra que o mundo inteiro sai no tapa por vacinas. Na Europa, ninguém discute tratamento precoce. Seus líderes estão de olho nas farmacêuti­cas, a ponto de proporem bloqueio de exportação de doses para impedir a venda de vacinas “por fora”, como as que empresário­s brasileiro­s tentam comprar. Nos EUA, o ex-presidente que nos forneceu cloroquina também assinou uma ordem executiva “para garantir que os cidadãos americanos tenham a primeira prioridade para receber vacinas americanas”. A prioridade por vacinas é outra. Como na Índia, que nos forneceu insumos para fazer cloroquina, mas precisou de tempo e diplomacia para fornecer vacinas.

Aqui, o tratamento precoce encobre o prejuízo e a incompetên­cia do Brasil em assegurar e distribuir vacinas. “Não queremos vacina, temos cloroquina”, dizia o cartaz. E dá a impressão de que a catástrofe de Manaus poderia ser evitada com um kit Covid que tem os poderes de cura de um pacote de jujubas, quando seria evitada com distanciam­ento, fechamento estratégic­o e gestão pública.

Manaus não é exceção, é o destino da falta de controle. Lá temos variantes do coronavíru­s com caracterís­ticas que foram associadas com maior transmissã­o e com a possibilid­ade “realista de [...] um aumento do risco de morte”, segundo o órgão consultivo que aconselha o conselheir­o-médico-chefe do governo do Reino Unido. Variantes que já circulam no país. O jogo ficou mais difícil em 2021. E esse curandeiri­smo que sustenta negligênci­a fica ainda mais perigoso. Não precisamos de tratamento precoce, precisamos de vacinas e distanciam­ento.

Fontes: https:/ bityli.com/ AZE3A e https:/ launchands­calefaster.org/COVID-19

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