Coleção mostra a poesia radical de Audre Lorde
Obra da escritora nova-iorquina ensina que só é possível pensar o mundo partindo da questão do amor e da diferença
É fenômeno recente o empenho de editoras do país na publicação de pensadoras da diáspora africana, pouco ou nada traduzidas no Brasil, a despeito de sua circulação intensa nos circuitos do ativismo e da intelectualidade negra.
Em hora oportuna, Audre Lorde também é beneficiada por esse tour de force que resulta na coleção que recebe seu nome, fruto da parceria entre as editoras Ubu, Bazar do Tempo, Relicário e Elefante, algo inédito no Brasil.
O ineditismo se torna ainda mais expressivo com a adoção de um único projeto gráfico para as quatro obras, com capas rigorosamente iguais.
A coleção impulsiona o nome e a obra desta nova-iorquina de origem afro-caribenha, que há muito influencia as mulheres negras brasileiras e se firma como referência para o feminismo negro, a luta antirracista e LGBTQI+.
Extensivamente, é uma obra que se oferece como inescapável para os preocupados com os destinos da humanidade.
Mulher, negra, lésbica, mãe, poeta, professora, Lorde habita o mundo da linguagem para fazer das palavras, a um só tempo, refúgio e território de resistência ou reexistência.
Os livros lançados recentemente —“Sou Sua Irmã”, “Entre Nós Mesmas”, e “A Unicórnia Preta”— flagram a insistência da escritora em reconstituir os laços entre mulheres lésbicas e heterossexuais e também entre homens negros.
Segundo ela, as distâncias impostas por patriarcado e racismo fazem com que, ilusoriamente, negras hétero se sintam em patamar diferente em relação às negras lésbicas, o que nos impede de ter uma plataforma política que enfrente o que nos destitui e mata.
Isso leva Lorde a conceber a diferença como basilar para a convivência entre pessoas negras que são, por essência, diversas —“mulheres negras não são um tonel de leite achocolatado homogêneo”.
Esse é um dos motes que vertebram “Sou Sua Irmã”, fazendo jorrar amor, dor, ódio, raiva.
A terceira parte do livro traz relatos na forma de diário em que acompanhamos a luta de Lorde contra o câncer, travada em concomitância com seu ativismo, sempre cortando silêncios em prol da emancipação dos subalternizados.
Escrito de 1973 a 1982, “Entre Nós Mesmas” reafirma a vocação poética de Lorde, que reúne elementos da natureza e os metamorfoseia em outras linhas de montagem, produzindo sentidos de território, diáspora, memória.
São poemas-exortação que nos convocam a construir e palmilhar trilhas subjetivas, fundamentalmente políticas, que franqueiam possibilidades de nos situar nos mundos que habitamos e nos habitam.
Nos poemas de “A Unicórnia Preta”, de 1975 a 1977, as vivas impressões de uma África plural pulsam e se estendem do Caribe ao Harlem. As mulheres que amam são também mulheres guerreiras, que esgrimem suas espadas afiadas.
Lorde toca as feridas de um projeto moderno ocidental que deixou muita gente de fora. É um livro que faz navegar por outras cosmovisões, provavelmente com a intenção de resgatar o que sempre foi recalcado pelo dominador.
As imagens da África e da afrodiáspora parecem cumprir um programa genealógico com potência para desfazer e refazer paradigmas. “A unicórnia preta é inquieta/ a unicórnia preta é implacável/ a unicórnia não é livre.”
Com esses livros já em circulação, Lorde traz o frescor das possibilidades da transformação pelas pétalas das vozes que se abrem e percorre temas que vêm ganhando novos pontos de inflexão.
O conjunto não poderá ser circunscrito nos liames restritos do identitarismo. Ao tratar de subjetividade, do amor e da diferença, Lorde não se posiciona em terreno restrito.
Pelo contrário, nos ensina poeticamente que só é possível transformar o mundo se considerarmos de partida estas questões que nunca foram menores, tampouco acessórias.
Quem tiver olhos para ver e ouvidos para ouvir, que acompanhe o que irradia de seu pensamento e de seu ativismo, irrompendo outros enunciados que tornam visíveis camadas soterradas das existências de cada uma e de todos.