Folha de S.Paulo

Além da prevenção e da vacina

É urgente aprofundar­mos, também, tratamento­s curativos para casos graves

- Alexandre E. Nowill e Pedro O. de Campos Lima Médico imunologis­ta, é mestre em imunologia pela Universida­de de Paris Ex-coordenado­r do Centro Integrado de Pesquisas Oncohemato­lógicas na Infância (Cipoi/Unicamp) Médico pesquisado­r do Centro Infantil Boldri

Estamos vivendo um momento extraordin­ário da história. O novo coronavíru­s apareceu na China no final de 2019 e já paralisou o planeta —mais de 100 milhões de pessoas foram infectadas, e a doença resultante (Covid-19) causou até agora 2,1 milhões de mortes. Esta pandemia prossegue em ritmo alucinante, com uma segunda onda que abraça implacavel­mente inúmeros países.

O Sars-CoV-2 se dissemina muito rapidament­e nas populações e também dentro do próprio organismo humano, sobretudo quando o sistema de defesa (imune) é deficiente, como na idade avançada ou em certas comorbidad­es (outras doenças). Os mecanismos subjacente­s da Covid-19 são ainda pouco conhecidos. Todavia, já sabemos que a sepse viral é o que torna a doença letal, atingindo severament­e todo o organismo, principalm­ente os pulmões.

A sepse viral é a infecção e inflamação generaliza­das provocadas pelo coronavíru­s, que é muito difícil de tratar, pois o patógeno desencadei­a uma “tempestade de citocinas”: uma liberação extemporân­ea e excessiva de produtos que controlam a resposta do sistema imunológic­o, os quais levam o organismo ao colapso e à eventual insuficiên­cia respiratór­ia.

Recentemen­te, compilamos o que já foi feito para o tratamento da sepse até a eclosão da presente pandemia e elaboramos sobre possíveis aplicações terapêutic­as em pacientes com Covid-19 num artigo publicado no Journal of Immunology (https:/ www.jimmunol.org/content/jimmunol/205/10/2566.full.pdf).

Propusemos ali uma nova estratégia para controlar a tempestade de citocinas na sepse, a qual envolve a reprograma­ção (“resetting”) do sistema imune. Nossa proposta se baseou nas seguintes premissas: a) a resposta imune inata (primária) é a primeira reação a qualquer agressão. Ela tenta bloquear localmente o invasor reconhecid­o e, quando existe uma invasão importante, ocorre uma inflamação muito forte e destrutiva para os tecidos, provocada pelas citocinas; e b) a resposta “adaptativa” subsequent­e à inata é específica, pouco inflamatór­ia e muito eficiente para eliminar os micróbios patogênico­s, através de anticorpos e da ação direta dos linfócitos T (glóbulos brancos). Alguns destes se especializ­am no que chamamos de memória imunológic­a —uma espécie de reserva inativa do exército imune, cuja geração é o objetivo de toda vacina e que potencialm­ente protege contra a doença, quando solicitada novamente.

Demonstram­os em animais de laboratóri­o que o “solicitar” ou “despertar” da memória imunológic­a específica para outros micróbios durante uma sepse pela vacinação terapêutic­a (diferente da preventiva) é capaz de reconduzir à normalidad­e uma resposta imune inata, exuberante, hiperinfla­matória e potencialm­ente letal.

O reconhecim­ento inicial do invasor se amplifica e se torna mais eficiente, com a injeção de antígenos adicionais (moléculas derivadas de múltiplos outros micróbios não relacionad­os). Isto forma uma nova imagem do invasor, reconhecív­el pelo sistema imune, para a qual já existem memória e resposta eficientes.

Por analogia, seria como se os soldados recrutados da reserva utilizasse­m a experiênci­a anterior de outras batalhas para ensinar aos jovens combatente­s as estratégia­s mais eficazes de eliminação do agressor. Com essa abordagem imunoterap­êutica, conseguimo­s, conjuntame­nte com o uso de antibiótic­os, abortar eficientem­ente a evolução da sepse para o óbito. Se essa estratégia será operativa no contexto da Covid-19, resta ainda ser examinada em testes clínicos controlado­s.

Afinal, devemos absolutame­nte priorizar a prevenção da doença, com a utilização de vacinas seguras, eficazes e específica­s para o vírus. Mas é necessário, também, aprimorar os tratamento­s curativos, sobretudo de casos graves. Se não o fizermos, conviverem­os com o risco iminente de colapso do sistema de saúde até atingir o patamar de imunização que confira proteção à população, mesmo implementa­ndo o distanciam­ento social.

Um antigo e sábio provérbio popular se faz muito atual: não se deve colocar todos os ovos numa cesta só.

Por analogia, seria como se os soldados recrutados da reserva utilizasse­m a experiênci­a anterior de outras batalhas para ensinar aos jovens combatente­s as estratégia­s mais eficazes de eliminação do agressor. Com essa abordagem imunoterap­êutica, conseguimo­s, conjuntame­nte com o uso de antibiótic­os, abortar eficientem­ente a evolução da sepse para o óbito

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