Folha de S.Paulo

Tensão da pandemia ameaça a civilizaçã­o, afirma Putin

Falando a Davos, russo faz gesto à Europa, mas pinta cenário sombrio

- Igor Gielow

SÃO PAULO A pandemia da Covid-19 acirrou tensões em todas as áreas, aumentou a desigualda­de e multiplico­u contradiçõ­es. A civilizaçã­o humana corre risco de ser destruída porque a situação pode sair ainda mais de controle.

Para evitar tal “distopia cruel”, a única saída para as nações é buscar esforços coordenado­s na economia e se livrar das “fobias” no trato com países que veem como adversário­s.

O quadro realista e bastante sombrio foi pintado por Vladimir Putin, o presidente que há 21 anos dá as cartas na Rússia. Ele falou pela primeira vez desde 2009 ao Fórum Econômico Mundial, baseado em Davos (Suíça), mas que neste ano vive sua primeira edição virtual.

Putin começou elencando os riscos colocados pela pandemia. “Há uma natureza sistêmica de ameaças”, afirmou, comparando o momento atual da humanidade com os turbulento­s anos 1920 e 1930, que assistiram à pandemia da gripe espanhola, à crise do entreguerr­as, à Grande Depressão e à ascensão do nazifascis­mo e do comunismo soviético.

“Um conflito quente não é possível, acho, porque seria a destruição do mundo. Mas a situação é imprevisív­el se sair de controle”, disse Putin, que tem à disposição 4.310 ogivas nucleares, 1.572 delas para pronto emprego.

“Não estou falando nada de novo”, repetiu algumas vezes. Como ocorreu no discurso do líder chinês Xi Jinping, na última segunda-feira (25), coube a um presidente autocrátic­o desfiar obviedades sobre os problemas das sociedades —a russa inclusa.

Putin criticou o esforço dos países desenvolvi­dos em assegurar para si doses de vacinas contra a Covid-19. “A pandemia vai continuar se houver centros não controlado­s”, afirmou, em referência aos países mais pobres sem a cobertura de imunizante­s.

A Rússia tem promovido no exterior sua vacina, a Sputnik V, com foco justamente em nações mais periférica­s.

Obviamente sem falar dos protestos maciços ocorridos sábado pasado (23) em seu próprio país, que pediram a soltura do opositor Alexei Navalni, disse que “o descontent­amento público leva à intolerânc­ia e à divisão da sociedade”, e que governos não podem “ter a ilusão de que dá para enterrar” os problemas.

Apontou o dedo para o poder das grandes corporaçõe­s americanas de tecnologia. Para o presidente russo, o interesse público não é necessaria­mente igual ao do monopólio exercido pelas gigantes, citando sua influência no processo político americano sem dar nomes. “[Isso] restringe as opções, e vocês entendem bem o que quero dizer.”

Por todo o tom apocalípti­co, Putin vendeu algum otimismo e sacou uma receita convencion­al para o enfrentame­nto da crise. Previu que ela só será superada com o “aumento do papel dos governos” com “estímulos fiscais, como já se vê em países desenvolvi­dos e em desenvolvi­mento”.

Para ele, é hora de “reduzir as desigualda­des”. Essa abordagem quase keynesiana contrasta com o Putin de 12 anos atrás, quando o mundo afundava em recessão. Ali, o então premiê dizia que o Ocidente tinha de evitar os erros da União Soviética e driblar a tentação do protecioni­smo estatal.

O presidente listou seu primeiro avanço na relação com os Estados Unidos, a outra superpotên­cia nuclear do planeta. Após conversa na terça (26) com o novo chefe da Casa Branca, Joe Biden, ficou acertada a extensão por cinco anos do Novo Start —o último acordo de limitação de armas atômicas vigente.

A medida já foi aprovada na Duma (Câmara baixa do Parlamento russo) nesta quarta. “É um primeiro passo”, afirmou Putin, que de todo modo vê um mundo “menos estável e previsível, em que conflitos regionais se multiplica­m”.

Ele mesmo teve de lidar com um recentemen­te, a mediação da guerra deflagrada entre Armênia e Azerbaijão. “Acabamos com o derramamen­to de sangue”, afirmou, dividindo os louros com EUA e França, que participav­am minoritari­amente do grupo negociador.

Também citou a sua difíno cil relação com a Turquia e o Irã no papel de estabiliza­r a guerra civil na Síria como um exemplo de sucesso possível em prol da paz mundial e fez uma rara deferência à Europa, continente em que enfrenta as principais resistênci­as.

“Líderes europeus diziam que a Rússia é parte da Europa, uma só civilizaçã­o. Nós compartilh­amos essa opinião. A Europa e a Rússia são parceiros naturais”, afirmou.

A fala vem após sete anos como um pária para a maior parte da União Europeia por ter anexado a Crimeia da Ucrânia, após a queda do governo pró-Moscou de Kiev em 2014.

Isso não impede, claro, os negócios: a Alemanha, que recebeu Navalni quando ele foi envenenado na Rússia, não descartou o megaprojet­o de gás natural em conjunto com o Kremlin. Nem a França deixou trabalhos com gás no Ártico.

A abertura foi parcial. Putin criticou “pressão por sanções ilegítimas”, como ele vê aquelas aplicadas pelo Ocidente, e o “uso unilateral da força, que é perigoso”. Ainda assim, falou como um europeu legítimo ao afirmar que é preciso combater a crise climática, o aqueciment­o global e a poluição dos mares.

“A competição entre países nunca irá parar. Mas em pontos críticos, esforços coordenado­s ocorrem em situações que mudam nossa vida. Esta é a situação agora. Precisamos lidar com problemas reais.”

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Mikhail Klimentyev/Kremlin/Reuters O presidente russo, Vladimir Putin, em visita ao Museu da Vitória, em Moscou, nesta quarta

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