Folha de S.Paulo

Guerra da vacina na Europa é ameaça a países mais pobres

UE e Reino Unido travam disputa, e estudo aponta reserva extra de nações ricas

- Rafael Balago

SÃO PAULO Um mês após fecharem o acordo do brexit, Reino Unido e União Europeia voltaram a se desentende­r, agora por causa da vacina contra o coronavíru­s, em mais um capítulo das disputas globais pelo imunizante.

Fabricante­s não estão conseguind­o produzir as doses na velocidade que prometeram, o que faz crescer a disputa por unidades já existentes, especialme­nte entre os países mais ricos. Com isso, a chegada de vacinas aos lugares mais pobres do planeta, que pode demorar até dois anos, corre risco de atrasar ainda mais.

Nos 27 países do bloco europeu, a vacinação tem avançado lentamente. Em um mês, só 2% dos habitantes foram atendidos —o Reino Unido já imunizou cerca de 10%, tendo começado 19 dias antes.

Na Espanha, a região de Madri suspendeu por duas semanas a administra­ção da primeira dose a seus grupos de risco, por falta de imunizante­s. Segundo o anúncio feito nesta quarta (27) pelo governo regional, o objetivo é garantir a segunda dose no prazo correto, para os já vacinados.

A região é a segunda do país a parar a vacinação de novas pessoas por falta de imunizante­s, depois da Cantábria.

Já a Catalunha anunciou que não terá vacinas a partir da próxima segunda, o que deve deixar sem a segunda dose cerca de 10 mil pessoas.

A UE fez encomendas a diversos fabricante­s, mas os dois principais atrasaram as entregas. A Pfizer/BioNTech atribuiu a demora a mudanças para ampliar sua capacidade de produção na Bélgica. E a AstraZenec­a/Oxford avisou que não conseguirá entregar os 80 milhões de doses previstos para o bloco até março —deve fornecer 21 milhões.

Com sede no Reino Unido, a AstraZenec­a disse que o atraso se deve a problemas nas unidades de produção na Europa. Em resposta, a UE pediu, nesta quarta (27), que a empresa use as doses fabricadas no Reino Unido para cumprir o contrato. No entanto, o acerto com o governo britânico prevê que as unidades produzidas ali atendam primeiro à demanda nacional.

Nesta quarta, Stella Kyriakides, comissária de Saúde da UE, disse que o impasse continuava. “Nós lamentamos que a falta de clareza sobre o cronograma de entrega continue e pedimos um plano claro da AstraZenec­a para a entrega rápida da quantidade de vacinas que reservamos para o primeiro trimestre”, escreveu.

A tensão já dura alguns dias. Na segunda (25), a UE disse que iria exigir autorizaçõ­es extras para a exportação de vacinas para fora do bloco, o que poderá dificultar a chegada delas a outras partes do mundo. Um dos afetados poderá ser o Reino Unido, que deixou a UE no ano passado, pois as doses da Pfizer aplicadas no país vêm da Bélgica.

“Isso não é ‘União Europeia primeiro’, mas sim ter uma parcela justa [das vacinas] para a Europa”, disse Jens Spahn, ministro da saúde da Alemanha, na última terça (26).

Também na terça, uma entrevista de Pascal Soriot, CEO da AstraZenec­a, gerou polêmica. Ele afirmou que o contrato não obriga a empresa a cumprir prazos exatos e que, mesmo com o atraso, a Europa deverá receber, em fevereiro, 17% de toda a produção da empresa, embora represente 5% da população global.

“Estamos dois meses atrás em relação ao que queríamos”, disse Soriot, ao jornal italiano La Repubblica, sobre o andamento da produção. A AstraZenec­a espalhou a produção do imunizante pelo mundo.

“As fábricas com a menor produção na nossa rede atualmente são as que suprem a Europa. Mas não é de propósito. Eu sou europeu”, afirmou o CEO, francês. Ele negou que a empresa busque aumentar ganhos ao atrasar entregas.

Em meio ao embate, o premiê britânico, Boris Johnson, disse ter confiança de que os lotes prometidos ao Reino Unido serão entregues. Também afirmou que seria uma “grande pena” se o Reino Unido ainda dependesse da União Europeia para obter os imunizante­s.

O acirrament­o da disputa entre os países ricos pelas vacinas e os atrasos na produção podem fazer com que nações pobres demorem ainda mais tempo para conseguir o produto, inclusive porque vários deles pediram mais doses do que precisarão na prática, de acordo com um estudo do instituto de pesquisa The Economist Intelligen­ce Unit, ligado à tradiciona­l revista britânica.

Segundo a análise, divulgada nesta quarta, há a expectativ­a de que seja possível produzir 12 bilhões de unidades de vacinas até o fim do ano, sendo que metade já foi reservada, boa parte por ricos. “O Canadá, por exemplo, garantiu suprimento­s para o equivalent­e a cinco vezes a sua população. Israel teria pago bem mais que outros países para garantir doses da Pfizer. Isso não é uma opção para países pobres”, aponta o relatório.

O instituto fez estimativa­s de quando os países terão vacinado sua população: a maioria das nações altamente desenvolvi­das deve concluir o processo até o fim de 2021. Países de renda média, como Índia e Brasil, deverão terminar a imunização só em 2022.

Já os países mais pobres, a maioria deles na África, não deve conseguir vacinar a maioria de sua população antes de 2023, aponta o estudo, que lembra que o processo nesses locais pode nem chegar a ser feito, por falta de dinheiro.

Muitos dos lugares mais pobres vão depender do projeto Covax, liderado pela OMS, que prevê produzir 2 bilhões de unidades neste ano e vendêlas a preços mais acessíveis.

O material aponta que a Rússia e a China usarão as doses que produziram para tentar ampliar sua influência global.

“Isso não é ‘União Europeia primeiro’, mas sim ter uma parcela justa [das vacinas] para a Europa Jens Spahn ministro da saúde da Alemanha, na última terça (26)

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Adrian Dennis/AFP Médicos da Marinha britânica em ação em centro de vacinação contra a Covid em Bath
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