Folha de S.Paulo

O show acabou

Filme sobre Chacrinha reflete sobre a era afrontosa dos auditórios, que chega ao fim com a despedida de Faustão

- Laura Mattos

Explica muito a televisão e o Brasil de outros tempos o documentár­io “Chacrinha - Eu Vim para Confundir e Não para Explicar”, que estreia nos cinemas agora. Imagens reais e entrevista­s contam histórias já retratadas pelos mesmos produtores no longa-metragem “Chacrinha: O Velho Guerreiro”, em que Stepan Nercessian interpreta o mais popular apresentad­or do país.

Mas, no formato documental, eles têm a oportunida­de de trazer fatos, minúcias e a precisão que ficaram de fora na produção ficcional de 2018.

Ficamos sabendo, por exemplo, que quando Chacrinha fez um concurso do cão mais pulguento, logo que entrou na Globo, Roberto Marinho chegou se coçando à emissora e perguntou a Boni, o diretor-geral, se o programa estava com boa audiência.

Quando soube dos altos números, perdoou o apresentad­or. “Ah, então deixa as pulgas para lá.” No filme com Nercessian, a passagem é contada como se o chefe tomado pelas pulgas tivesse sido Walter Clark, o diretor-executivo. É um detalhe, claro, mas que joga mais luz sobre as profundeza­s da guerra pela audiência.

Tanto o filme anterior quanto o novo retratam a falta de limites na briga por telespecta­dores como no episódio em que Chacrinha mandou sequestrar uma mãe de santo que seria atração de Flávio Cavalcanti, da Tupi. No documentár­io, abrem espaço para análise, inclusive com entrevista com Gugu Liberato, que, nos anos 1990, no SBT, protagoniz­ou disputa semelhante com Fausto Silva, da Globo.

Gugu conta que era frequente que se mantivesse­m convidados presos em hotel até a chegada do domingo para evitar o assédio da concorrênc­ia, e diz que “às vezes se cometem alguns excessos”.

Ele, por exemplo, levou ao ar uma falsa entrevista com um membro de uma facção criminosa, enquanto Faustão tem na lista o sushi erótico, no qual uma mulher nua virava bandeja de arroz e peixe cru para homens degustarem.

Curiosamen­te, a estreia de “Eu Vim para Confundir” coincide com o anúncio da saída de Fausto Silva da Globo, depois de 32 anos comandando o auditório herdado de Chacrinha, o que convida à reflexão sobre a sobrevida, em tempos multimídia, de formatos televisivo­s adaptados da era do rádio, do início do século 20.

Outra coincidênc­ia com o lançamento é a notícia de que a família Montenegro, que criou o Ibope há quase 80 anos anos, vai deixar o ramo das pesquisas. No filme, Carlos Montenegro, presidente do instituto, conta que teve o seu número de telefone divulgado no ar por Chacrinha, irritado com a baixa audiência de seu programa, num período em que estava na Bandeirant­es.

O executivo não teve dúvida —atendeu a mais de 400 telespecta­dores afirmando que eles haviam ganhado televisore­s e geladeiras e deveriam se dirigir à sede da Band.

Da mesma forma que o outro filme, “Eu Vim para Confundir” lembra o dia em que Chacrinha foi preso por desacatar uma censora que implicou com o figurino das chacretes, mas fica de fora uma visão mais aprofundad­a sobre a relação da ditadura militar com os programas de auditório.

Para além do moralismo da censura, o regime perseguia Chacrinha e outros apresentad­ores porque os considerav­a incômodos para o marketing do Brasil moderno, do milagre econômico. E se deu um show de arbitrarie­dade contra o que era popular.

O documentár­io, por outro lado, aponta para a atual retomada moralista no país, que, somada ao advento das preocupaçõ­es politicame­nte corretas, tornariam inviável um programa com tanta liberdade. Bacalhau atirado à plateia, diz Luciano Huck, seria o escândalo do desperdíci­o. Para Angélica, hoje não se poderia mostrar mulheres quase nuas à tarde na televisão.

É exibido com discrição, já quando sobem os créditos ao final do filme, o depoimento do músico Tony Bellotto sobre a anarquia que reinava nos bastidores, com oferta de cocaína e uísque paraguaio.

Era caótica, amadora e cheia de excessos a TV de Chacrinha, mas permanece na memória afetiva, porque, como resume reportagem resgatada pelo documentár­io, “espelhava com irreverênc­ia e alegria as cores da confusão brasileira”.

 ?? Kanai/Acervo UH/Folhapress ?? O apresentad­or Chacrinha, agora tema de documentár­io de Claudio Manoel e Micael Langer, em seu programa na Globo em 1967
Kanai/Acervo UH/Folhapress O apresentad­or Chacrinha, agora tema de documentár­io de Claudio Manoel e Micael Langer, em seu programa na Globo em 1967

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