‘O Tigre Branco’ mostra como o atraso e a miséria são fabricados
Um roteirista me disse há tempos que, para a Netflix produzir um filme, ele precisa interessar a pelo menos 15 países.
Não tenho confirmação disso, mas faz todo o sentido, já que a empresa trabalha em centenas de países. Partindo dessa hipótese, “O Tigre Branco” interessa, evidentemente, ao país que o concebeu, a Índia. Então faltam apenas mais 13 países, pois, a julgar pela sua trama, ele interessa igualmente ao Brasil.
A Índia, diz o narrador e protagonista da história, Balran, é um país com muitas castas, mas no fundo as que importam são apenas duas, a dos ricos e a dos pobres. Ou a dos exploradores e a dos explorados.
Sendo um pobre cujo destino seria quebrar pedras de carvão, ele decide abandonar o lugarejo onde nasceu e tentar a sorte em Nova Déli.
É o início de uma bem-sucedida ascensão à riqueza (isso está no prólogo do filme), em que o que importa são as artimanhas que o levam a abandonar sua antiga condição.
Daí o título do filme —o tigre branco é uma raridade. Um em cada geração. Assim se vê Balran em sua luta para subir à classe privilegiada.
O que realmente faz a originalidade de “O Tigre Branco” é, primeiro, que essa trajetória será tratada, na maior parte do tempo, com humor.
E segundo, e mais importante, é que ao longo dessa batalha se delineia uma sociedade em que o único valor real é o dinheiro. O que se tem, que se pode exibir, com o qual se suborna o governo etc.
Enquanto Balran desenvolve a consciência do que é e do que pode vir a ser, o filme assume mais a dramaticidade implícita em sua temática, embora sem perder a sua linha de argumentação.
Toda a história se passa em torno de uma carta que o protagonista escreve ao primeiro-ministro chinês. A China é ali pertinho da Índia e hoje já é um dos países mais desenvolvidos do mundo.
É verdade que a Índia produz vacinas e o Brasil as compra. Mas a ideia é a mesma —o subdesenvolvimento é uma coisa que se fabrica.
Esse produto Netflix consegue, assim, pensar ao mesmo tempo na miséria das pessoas, na revolução tecnológica, na evolução do capitalismo, na mudança dos valores das últimas décadas e na corrupção política gerada por esse apego ao dinheiro. Convenhamos que não é pouca coisa.