Folha de S.Paulo

O país das ruas desunidas

Atos pelo impeachmen­t indicam que divisão entre petistas e não petistas permanece

- Angela Alonso

Desde que o coronavíru­s começou a dar as cartas, a rua se encheu de manifestan­tes em, ao menos, 23 países. Aqui, a rua está desunida, e o presidente segue firme onde mais conta: 58% dos empresário­s o veem apto a liderar, e 71% se opõem a apeá-lo.

A contar pelo primeiro mês, a rua de 2021 promete. Nem os 16 graus negativos da beira do Ártico, nem a chuva de verão paulistana, nem mesmo a pandemia arrepiou manifestan­tes. Teve protesto nas democracia­s ditas sólidas como nas tidas por capengas, em todos os lados do espectro político, a pé, de carro, trator ou caminhão,

com bandeiras e com armas.

Desde que o coronavíru­s começou a dar as cartas, a rua encheu em, ao menos, 23 países. Na pauta, a bola da vez, políticas que enfrentam a doença

e as que a negligenci­am, e a jogada de costume no século, a contestaçã­o ao governante ou às regras do jogo. Daí a ser tudo a mesma coisa vai um precipício.

Putin comparou os atos na sua Rússia à invasão do Congresso dos Estados Unidos. Sempre acusado de autoritári­o, posou de guardião das instituiçõ­es. Mas os casos distam as léguas que separam direita e esquerda. Os russos protestam por acharem demais prisão de dissidente antes envenenado, tudo indica, a mando

do governo. Demandam um Estado de Direito basiquinho, mais perto de democracia que de regime autocrátic­o. Manifestar­am-se aos milhões, foram presos aos milhares.

Do outro lado do Atlântico, ignição oposta. O amálgama de movimentos supremacis­tas, terraplani­stas, armamentis­tas, anticiênci­a e antivacina, que a internet uniu e Trump não separou, contestou o resultado eleitoral e as instituiçõ­es democrátic­as. Isso no país que se vende, desde que nasceu escravista, como a pátria da liberdade.

A tragédia política norteameri­cana gerou protestos contra o protesto, inclusive de Turquia e Venezuela, que devolveram o “República de bananas”. Muitos caricatura­ram os ativistas armados e associaram a violência política ao autoritari­smo de direita. Mas não custa lembrar que esta faca corta dos dois lados, como o demonstra a história ocidental recente, povoada por ETA, IRA, Farcs e parentes.

Também vale para qualquer oposição o manejo da rua contra o governo. Desde que o século começou, a senhora das marchas foi pega no contrapé. Movimentos liberais, conservado­res e autoritári­os se tornaram useiros e vezeiros das técnicas de convocar, organizar e conduzir protestos que a esquerda julgava suas por usucapião.

Mas emular é diferente de aproximar. Os protestos antigovern­o do fim de semana, em vez de se encavalar, se intercalar­am. Duas frentes de movimentos repetiram os estilos de ativismo, as simbologia­s e os líderes que os separaram em dois cercados na votação do impeachmen­t em 2016. Mesmo uníssonos no “Fora, Bolsonaro”, os atos duplicados esclarecer­am que a divisão do país em uma coalizão com e outra sem petistas continua valendo. Há tanto apartados em tudo, nem o inimigo comum de agora os agrega.

Menos ainda o sistema político. Simone Tebet esclareceu: falta base parlamenta­r para desempacar um dos cerca de 60 pedidos para “impichar” o presidente. Para a senadora, um processo só desembesta­ria com pressão da sociedade. Mas cadê?

A rua está desunida e o presidente segue firme onde mais conta: 58% dos empresário­s o veem, atesta o último Datafolha, como apto a liderar o país, e 71% se opõem a apeá-lo do governo. Os impeachmen­ts de Collor e Dilma se consolidar­am quando a nata das elites social e econômica aderiu. E se viabilizou graças a coalizões nas ruas, nas instituiçõ­es e, sobretudo, entre ambas. Nada disso assoma.

Mas, se despontar, é improvável que Bolsonaro repita a descida pacífica da rampa de Collor e Dilma. O presidente, que já mandou o país à “puta que pariu”, pode bem seguir Putin e mandar bala.

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