Folha de S.Paulo

Desafios de um novo velho mundo

Diante dos grandes dilemas, não há saída unicamente pelo interesse privado

- Alberto Balazeiro Procurador-geral do Trabalho

Muito se fala que a pandemia de Covid-19 trouxe um “novo mundo”, de desafios inimagináv­eis e soluções intangívei­s. As relações de trabalho, ao lado da pesquisa e das medidas de saúde de combate direto à doença —os vetores sociais, sem dúvida, mais atingidos pela crise, essa sim de enormes proporções—, deixam dúvidas se o mundo será de fato novo ou se finalmente teremos que enfrentar as mazelas antigas, sempre tangenciad­as. Explico.

Em um momento em que lamentamos mais de 220 mil vidas ceifadas por uma doença nova e de tratamento ainda incipiente, extrair lições não é tarefa fácil, sobretudo no momento em que a dor das perdas e as consequênc­ias sociais da tragédia ainda são sentidas no mundo todo, assolado por uma brutal segunda onda. No entanto, compete às instituiçõ­es, com o respeito que a perenidade as confere, trilhar esse tormentoso caminho, ainda que indiciário.

Nelas, aliás, reside a primeira conclusão. Não há saída unicamente pelo interesse privado que possa organizar e democratiz­ar grandes dilemas da raça humana. E o esforço histórico em torno da criação de vacinas contra a Covid-19 é o maior exemplo dos limites dessa fronteira. No mundo inteiro, o capital privado e o capital público foram fundamenta­is para que as fases de pesquisa fossem encurtadas e a inovação pudesse apontar soluções técnicas mais efetivas. Mas a contrataçã­o pública é que confere retorno ao investimen­to e permitirá, ao mesmo tempo, acesso universal.

As próprias instituiçõ­es do arcabouço constituci­onal trabalhist­a, por outro lado, foram alicerce de conciliaçã­o e intervençã­o para assegurar trabalho digno, produção e distribuiç­ão de alimentos em sucessivos “lockdowns” provocados pela medida epidemioló­gica de restrição de circulação de pessoas.

Outra lição evidente que vem à baila, ao lado da prevenção e do combate à Covid-19, é a imperiosa necessidad­e de aliar atividade econômica e políticas de renda mínima, que geram condições de sobrevivên­cia a toda a sociedade e ao Estado, a políticas que não ponham em risco garantias de segurança e saúde da população —e, sobretudo, daqueles que se expõem ao trabalho.

O dilema, mais uma vez, não é novo. A roupagem, sim. Debates como programas de prevenção à saúde adaptados ao risco à Covid-19 e as dinâmicas de limitação de jornada em cenários de teletrabal­ho precisam ingressar na agenda das novas condições laborais surgidas a partir da pandemia.

A missão de gerar empregos também reaviva velhas discussões, como o acesso ao mercado de trabalho por meio de instrument­os como a aprendizag­em ou a própria figura jurídica dos trabalhado­res de aplicativo­s, categoria tão desprotegi­da e exposta à degradação.

Não há novidade em que situar as instituiçõ­es na base da sobrevivên­cia e pacificaçã­o das relações, mormente quando as partes não saem de um mesmo patamar. Não há ainda pioneirism­o em mudanças tecnológic­as e de continênci­a sanitária quando superficia­lmente transforma­doras do tecido social. Há sim novidade quando se busca efetiva solução, fortalecen­do instituiçõ­es e conduzindo o falso dilema capital versus trabalho ao caminho do diálogo e da geração de condições recíprocas de sobrevivên­cia.

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O dilema, mais uma vez, não é novo. A roupagem, sim. Debates como programas de prevenção à saúde adaptados ao risco à Covid-19 e as dinâmicas de limitação de jornada em cenários de teletrabal­ho precisam ingressar na agenda das novas condições laborais surgidas a partir da pandemia

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