Folha de S.Paulo

Contra coronavíru­s, província na Argentina confina 18 mil

Quem chega a Formosa faz quarentena em centros lotados, sem água ou comida

- Sylvia Colombo

BUENOS AIRES Há quase um ano, a província de Formosa, uma das mais pobres da Argentina, está completame­nte isolada do resto do país. Apenas moradores podem entrar ali, e mesmo assim, só depois de cumprir longas e draconiana­s medidas sanitárias impostas pelo governo local para combater o coronavíru­s.

Imagens de ginásios lotados, sem isolamento das pessoas infectadas, de acampament­os abarrotado­s nas fronteiras e de gente pedindo ajuda aos gritos de dentro de quartos de hotel têm chocado os argentinos.

Além de exigir um teste com resultado negativo, o governo local obriga quem ingressar no território a cumprir quarentena­s, em locais designados pelas autoridade­s, que ultrapassa­m os 20 dias —excedendo a recomendaç­ão da OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde).

Atualmente, há 18.800 moradores mantidos em ginásios, escolas e hotéis, que sofrem com a falta de água, comida e acesso a higiene e não recebem acompanham­ento médico. Os locais, trancados e vigiados pela polícia, estão lotados, o que impede que sejam cumpridas as medidas de distanciam­ento social.

Os testes para o diagnóstic­o de Covid-19 demoram dias para serem realizados e os resultados são entregues apenas oralmente, sem laudos. Também é assim, sem apresentar documentos oficiais, que as autoridade­s comunicam as pessoas sobre quantos dias elas devem permanecer no local —há relatos de moradores que estão há mais de um mês de quarentena.

Nas fronteiras da província, mais de 7.500 moradores estão acampados de maneira precária, alguns tentando voltar para casa desde março.

Muitos deles possuem os documentos necessário­s e, ainda assim, não conseguem entrar no território. Outros não podem arcar com os custos do exame de PCR. Assim, acabam ficando nos acampament­os, onde também falta comida e água —entidades de direitos humanos têm distribuíd­o doações nesses locais.

Acusações de violações de direitos humanos vêm se acumulando, e a Anistia Internacio­nal divulgou um comunicado afirmando que as medidas sanitárias do governo de Formosa excedem as normas de um Estado de Direito. A organizaçã­o pede uma intervençã­o do governo nacional.

No dia 11 de outubro, Mauro Rubén Ledesma, 23, foi encontrado morto por um pescador no rio Bermejo, na fronteira entre Formosa e a vizinha Chaco. O rapaz havia pedido a permissão especial de voltar para casa, onde estão sua filha de dois anos e sua mulher, mas ela foi recusada. Por meses, ficou esperando a oportunida­de de cruzar a fronteira, até que se desesperou e tentou entrar na província ilegalment­e, a nado.

No começo deste mês, Zunilda Gómez, grávida, o marido e seus três filhos foram retirados de casa, na cidade de Clorinda, e levados pela polícia a um centro de isolamento sanitário. Eles fizeram o teste para detectar o coronavíru­s, e o resultado deu negativo. Ainda assim, ficaram isolados mais de dez dias em um quarto sem água ou limpeza e com poucas visitas de um médico. Zunilda perdeu o bebê.

Essas duas histórias são parte de uma série de depoimento­s colhidos por advogados e políticos da província, que pretendem levar o caso para a Comissão Interameri­cana de Direitos Humanos.

A Igreja Católica também se pronunciou, repudiando os métodos usados em Formosa.

Jornalista­s estrangeir­os ou baseados em outras províncias da Argentina não podem entrar na região, mesmo que possuam as permissões de trânsito emitidas pelo governo nacional —e que, em teoria, valem para todo o país.

Na semana passada, a vereadora e advogada Gabriela Neme foi detida ao visitar vários centros de isolamento pedindo a liberação de pessoas que já estavam havia mais de um mês nos locais, mesmo apresentan­do testes negativos ou estando sem sintomas da doença —neste caso, para cumprir a quarentena em casa.

“O ambiente é tão insalubre para todos que está levando pessoas que não tinham o vírus a se infectarem”, afirmou a advogada à Folha.

Ela foi presa diante de câmeras de TV e solta horas depois, mas responderá a um processo. “Estou com hematomas e machucados já documentad­os, também entrarei com uma ação contra o Estado.”

Para o senador Luis Naidenoff, o que está sendo feito em Formosa é uma demonstraç­ão de poder que não tem a ver com a saúde. “É um abuso de autoridade. Temos vários exemplos de outras medidas de quarentena, na Argentina e em outros países, em que é possível cumprir com os protocolos, evitar aglomeraçõ­es, manter distanciam­ento social e higiene sem causar esse sofrimento ou abusos de direitos humanos”, afirmou.

Formosa é governada desde 1995 por Gildo Insfrán, filiado ao Partido Justiciali­sta (a sigla peronista), que comanda a província como um caudilho —a legislação regional permite a reeleição indefinida.

De acordo com os dados oficiais, 41,6% dos 630 mil habitantes de Formosa viviam abaixo da linha da pobreza em 2019, segundo pior resultado em todo o país e acima da média nacional, de 35,4% —no Brasil, o índice fica em 24,7%, aponta o IBGE. No IDH (Índice de Desenvolvi­mento Humano), a região é a lanterna no ranking argentino.

Mais de 80% da população tem empregos vinculados ao poder público e praticamen­te não há oposição ao governo.

Mesmo com acusações de vínculo com o contraband­o (a província faz fronteira com o Paraguai) e de desvio de verbas federais, Insfrán é blindado pelo peronismo —movimento político que tem entre seus principais integrante­s o presidente Alberto Fernández e sua vice, Cristina Kirchner.

“Insfrán se apoia numa das práticas mais antigas de poder na América Latina, o clientelis­mo e o medo. Ninguém se levanta contra ele porque aqui [em Formosa] não há Estado de Direito. A Justiça da província está em suas mãos, então o cidadão não tem proteção, não tem uma Justiça a quem recorrer e teme seu poder”, afirma Naidenoff, que pertence ao partido de oposição União Cívica Radical

Em resposta às críticas sobre as medidas para tentar conter o coronavíru­s, Insfrán responde dizendo que “o objetivo é salvar vidas” e cita dez mortos por causa da doença —o número, sobre o qual pairam dúvidas por falta de comprovaçã­o, é o menor do país. “Vocês pensam que para nós é agradável tomar essas medidas? Claro que não.”

Insfrán afirma que os ataques contra as medidas sanitárias impostas por ele são “uma perseguiçã­o política, porque este é um ano eleitoral” —em referência às eleições legislativ­as de outubro.

Enquanto isso, a Argentina recebeu, na tarde desta quintafeir­a (28), 5 milhões de novas doses de vacina vindas da Rússia. Até agora, já receberam as duas doses da Sputnik V 200 mil argentinos que trabalham na área da saúde em todas as províncias do país.

Agora, o governo prepara o início da vacinação da população em geral, começando pelos idosos e pela população de grupos de risco. A Argentina também fechou um acordo com Oxford/AstraZenec­a, prevista para chegar em março. E há negociaçõe­s em aberto com Pfizer, Sinovac e Sinopharm, além da Moderna.

A Argentina, que tem 44,45 milhões de habiantes, já registrou quase 1,9 milhão de infecções e 47 mil mortes pela doença, segundo a Universida­de Johns Hopkins (EUA).

 ?? Reprodução ?? O interior do estádio Cinquenten­ário de Formosa, convertido em um centro de isolamento na província
Reprodução O interior do estádio Cinquenten­ário de Formosa, convertido em um centro de isolamento na província
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil