Sob controle
Mundo chama de autoritarismo o que Xi trata por liderança
A obsessão pelo controle tem movido montanhas na China. Controle sobre as ideias durante a revolução cultural. Sobre o tamanho das famílias, com a política do filho único. Sobre a internet, na era digital.
Bill Clinton, esperançoso de que a internet fosse facilitar a abertura política na China, disse que controlar a internet era impossível. Seria como querer pregar uma gelatina na parede, afirmou. Não contava com a obstinação dos chineses.
Para quem gosta do controle, a pandemia oferece ocasião rara para exercê-lo e justificá-lo. Xi Jinping não perdeu a chance —e fez bom uso dela. Apesar de pequenos surtos esporádicos, a China tem conseguido evitar a disseminação da Covid-19.
Para conter o vírus, controlam-se as pessoas. Testagem em massa, aplicativos que rastreiam deslocamentos, quarentenas rigorosas, medição de temperatura com reconhecimento facial —em diferentes graus, tudo isso faz parte da vida de chineses há praticamente um ano.
Ao mesmo tempo, estarrecidos com o estrago da pandemia mundo afora, os chineses endossam a abordagem em função do seu resultado. Sabem, no entanto, que a máquina de controle sairá da pandemia fortalecida e modernizada.
Além do maior controle sobre a sociedade, há sinais de uma presença mais firme do Estado (e do partido) na economia. A tendência antecede a Covid e a recessão global, mas ganha vigor e legitimidade.
Em 2017, Xi disse que as estatais chinesas deveriam ser “mais fortes, melhores e maiores”. Células do partido nas empresas não são novidade, mas tornaram-se mais numerosas: 48,3% das empresas privadas tinham representação do partido em 2018 (em 2012 eram 35,6%).
As questões envolvendo Jack Ma se encaixam nesse cenário. O Alibaba —e o big tech chinês— tornaram-se grandes demais. Seu fundador, falante demais.
Ocorre que, no contexto da crise sanitária, a economia chinesa se saiu espetacularmente bem. O PIB mundial caiu, mas a China cresceu. O comércio encolheu, mas as exportações chinesas subiram. Investimentos internacionais despencaram, mas o fluxo para a China aumentou.
Resultados positivos nesses dois desafios —pandemia e economia— acabam por fortalecer o modelo chinês, incluindo seu pendor pelo controle.
Muitos apontam para o risco de que Pequim erre a mão. A interferência política sobre as empresas pode conter o dinamismo, a capacidade de inovação e o espírito empreendedor. Da mesma forma, se percebido como abusivo, o controle sobre as pessoas pode gerar insatisfação popular e instabilidade, especialmente num contexto de crescimento mais baixo.
No entanto, já tendo visto o Ocidente errar previsões derrotistas sobre a China, as autoridades chinesas hoje estão mais autoconfiantes que nunca.
Em 2019, a Qiushi, revista do Partido Comunista Chinês, publicou um discurso de Xi até então secreto. “Sempre que grandes potências colapsaram ou decaíram, a causa comum foi a perda de autoridade central”, ponderou ao refletir sobre a história.
Enquanto isso, as democracias liberais sentem calafrios diante da ideia de que os fins justificam os meios. De que o vício de controlar se legitime pela virtude do resultado.
O mundo chama de autoritarismo o que Xi trata por liderança. Ele não parece se importar. A pandemia e a recessão criam uma oportunidade que Xi não deixaria fugir ao controle. | seg. Mathias Alencastro | qui. Lúcia Guimarães | sex. Tatiana Prazeres | sáb. Jaime Spitzcovsky