Folha de S.Paulo

De erro no nome social à falta de banheiros, vida acadêmica traz barreiras para cientistas trans

- Ana Bottallo

Receber um certificad­o por um curso realizado ou pela participaç­ão em um congresso científico parece algo banal para a maioria dos brasileiro­s que cursam uma graduação ou pós-graduação, mas, para a população trans que atua na ciência brasileira, o ato pode ser humilhante.

Isso porque, embora utilizem o nome social nos seus círculos pessoais e profission­ais, muitos dos sistemas de matrícula e inscrição ainda pedem o nome de registro civil, sem a possibilid­ade de mudança.

O ato vai contra a resolução homologada pelo Ministério da Educação (MEC) em 2018 que autoriza o uso do nome social em matrículas de instituiçõ­es de ensino no país, enquanto a pessoa aguarda a retificaçã­o de nome.

Mas, mesmo com a retificaçã­o, produções acadêmicas podem carregar para sempre o nome antigo. “É muito inconvenie­nte ter no [currículo] Lattes diversos artigos com meu ‘nome morto’ e produções mais recentes com meu nome oficial, sem contar a confusão que isso acaba gerando em quem não me conhece”, explica Lucy Souza, 29, paleontólo­ga, mulher trans e youtuber.

Lucy fez a transição em seu último ano de doutorado, em 2019, quando desenvolvi­a sua tese em evolução de crocodilos fósseis, no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Além do inconvenie­nte da produção bibliográf­ica atrelada ao seu nome civil, ela conta que sofreu uma situação delicada em sua banca de defesa, quando pessoas que estavam no evento a chamaram diversas vezes pelo nome antigo, inclusive utilizando o pronome masculino.

Não se trata de detalhe. O reconhecim­ento pelo nome social é um direito de todos e implica ser respeitado e acolhido, especialme­nte em um ambiente em que a representa­tividade trans ainda é baixa.

Não há dados oficiais de quantos cientistas transexuai­s e travestis existem no Brasil. A reportagem entrou em contato com o CNPq (principal órgão fomentador de ciência no país e ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) para saber quantos currículos na plataforma Lattes utilizam o nome social, e o órgão não respondeu até a conclusão desta edição. A Capes e o MEC também não informaram quantos alunos de graduação ou pós transgêner­os estão matriculad­os em instituiçõ­es de ensino no país

Cresce, no entanto, o número de professore­s e professora­s trans nas universida­des e instituiçõ­es públicas. Desde 2017, cursos de graduação e pós no país, principal porta de entrada para a carreira científica, passaram a adotar cotas para estudantes LGBTs.

Em 2019, cerca de 19% das universida­des federais tinham cotas do tipo, mas a quantidade de estudantes declarados homens ou mulheres trans ainda era muito baixa, de apenas 0,1% em cada caso.

Dos mais de 37 mil grupos de pesquisa cadastrado­s no diretório do CNPq, apenas sete são direcionad­os par aos estudosde gênero e transexual­idade, entre os quais se destaca o NuCus, Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidad­es, da (UFBA) Universida­de Federal da Bahia.

Criado em 2007, o grupo hoje conta com mais de 60 estudantes de mestrado e doutorado e 17 pesquisado­res dedicados aos estudos queer.

Um desses pesquisado­res é Ian Habib, performer, escritor e professor transgêner­o. Formado em teatro, Ian desenvolve seu projeto de mestrado em dança na UF BA, buscando aliara arte ao debate sobre violência cotidiana einst itu cionalà comunidade trans.

A ideia do pesquisado­r trans como formador de conhecimen­to e não como objeto de estudo vem sendo consolidad­a principalm­ente pela construção de grupos de pesquisa e debate na sociedade.

“A nossa ocupação dos espaços é política e transforma­dora. Nós, historicam­ente, fomos objeto de experiment­ação na medicina e ainda hoje somos objetos de estudo. Quando existe uma pessoa trans nesses espaços, formando-se para ser pesquisado­r, as coisas começam a mudar de figura”, explica o biólogo trans Murillo Medeiros, 25, mestrando no programa de ecologia da UFBA que busca entender como as comunidade­s agrícolas fazem uso do solo.

Murillo reconhece que teve privilégio­s na vida acadêmica, principalm­ente por sua cor, branca, e sua condição social, que permitiu que estudasse em escolas particular­es. Em 2014, quando ingressou no curso de biologia, começou o processo de transição.

“Fui a primeira pessoa abertament­e trans a ocupar aquele espaço, e a faculdade me trouxe muitas discussões interessan­tes. Mas sei que precisamos avançar muito socialment­e ainda. O Brasil é o país que mais mata transexuai­s, e muitas dessas pessoas estão marginaliz­adas. Como elas vão conseguir se manter dentro da universida­de?”

Embora a entrada na universida­de seja importante, são as políticas adotadas dentro do meio universitá­rio que vão garantir a continuida­de do acesso a esses espaços. “Cotas são essenciais, mas não são suficiente­s se não há fomento à pesquisa e políticas de permanênci­a. Hoje, a presença transgêner­a, travesti e não binária nas universida­des já é uma realidade, mas está ainda reservada para uma baixíssima parcela dessa população”, diz Habib.

A inclusão do cientista trans também abrange medidas como banheiros para diversos gêneros, que começaram a surgir nas universida­des em 2017. “O desrespeit­o ao nome social, as violências em banheiros, nas chamadas, tudo o que desvaloriz­a o conhecimen­to trans são barreiras ainda a serem transposta­s”, diz.

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Bruno Kelly/Folhapress Lucy Souza, 29, paleontólo­ga e youtuber, no Museu da Amazônia

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