Músicas de fábrica
Sucessos da música pop dependem cada vez mais de um time de autores por trás da composição, sinal do fim da era dos gênios
Travis Scott lançou “Sicko Mode”, hit em parceria com Drake, há três anos. A faixa tem desempenho impressionante no streaming —foi tocada 1,3 bilhão de vezes só no Spotify—, mas também chama a atenção por outro número, os 30 compositores listados como autores da faixa.
De fato, o método “artistacurador” de Scott, que em estúdio atua como uma espécie de catalisador de ideias, puxa a média para cima, mas nos últimos dez anos só 4% das músicas que figuram entre as 50 mais tocadas têm a assinatura de um só compositor.
Os números foram divulgados em pesquisa da revista Rolling Stone, que informa que a média de compositores para se fazer um hit nos Estados Unidos é de cinco pessoas.
“Os times de composição são comuns há muito tempo”, diz o DJ e produtor Zegon, do Tropkillaz, que já fez hits de Anitta e trabalhou com Racionais e Sabotage, entre outros. “No Brasil, sempre foi comum usar compositores, mas times de produção, parcerias entre produtores, letristas, músicos e beatmakers são recentes.”
Por aqui, a onda dos times de composição é mais tímida. Uma pesquisa do Ecad, contudo, mostra que o número de músicas com quatro ou mais compositores cresceu mais de 50% em 2020, em relação ao acumulado de 2016 a 2019.
A tendência é reforçada com uma consulta entre as mais tocadas no Brasil. “Rainha da Favela”, de Ludmilla, tem quatro autores, assim como “Modo Turbo”, de Pabllo Vittar, Luísa Sonza e Anitta, e “Ele É Ele, Eu Sou Eu”, de Wesley Safadão com Barões da Pisadinha.
Na música sertaneja, a prática da autoria coletiva está estabelecida há anos. Mas cantores de forró, brega e outros gêneros também estão inseridos na lógica —“Letícia”, hit de Zé Vaqueiro, tem quatro autores, mesma quantidade de “Só Tem Eu”, de Zé Felipe.
A ideia dos coletivos é usar o máximo de boas ideias possíveispara aumentara chance de a músicas e tornar umhit,eé usada por quem está no topo do mercado, os artistas que investem em suas músicas. “Várias cabeças, cada uma fazendo o que faz de melhor, com certeza entregam algo muito mais certeiro”, diz Zegon.
Os números podem pôr em xeque o papel clássico do compositor solitário, como um Cartola ou um Tom Jobim, um gênio que trabalha sozinho e tem suas composições famosasnas vozes de outros artistas. Mas não é bem assim, já que há questões comerciais e conceituais envolvidas nas decisões de quem é listado como autor.
Muitos coletivos de compositores de sertanejo, por exemplo, incluem os nomes de todos os seus integrantes, mesmo que a música tenha sido feita só por um deles — isso para que a divisão do dinheiro arrecadado seja igual.
Há também um crescimento na inclusão de beatmakers e produtores como autores. Historicamente, eles são incluídos como intérpretes, o que gera uma receita menor.
No Ecad, dois terços do que é arrecadado com execução de músicas em shows, rádio, TV e bares —depois de descontados os 15% da empresa— vão para os autores. O outro terço é dividido entre os intérpretes. No streaming, a proporção é diferente, mas também deixa em desvantagem os intérpretes, que só têm direitos sobre o fonograma —a gravação da música— e não à obra —a composição, que é imaterial.
“O pensamento, não só meu, mas de muitos que trabalham no pop brasileiro, é que a música é feita com uma mistura. Quem produz, escreve ou dá uma ideia —todo mundo que participa da criação é compositor igual”, diz Pablo Bispo, autor de hits do pop nacional que integra dois grandes coletivos de composição, o Brabo Music Team e o Dogz Produção Musical.
“É uma briga velha”, diz Zegon. “Jamais entro numa produção sem ter autoria. Composição é uma sociedade. Devia ser sempre encarada dessa forma, trabalho em conjunto.”
Ele diz que beatmakers são músicos e autores. “A música eletrônica deixou isso mais claro. Muitas vezes numa música pop, não tem nenhum instrumentista, apenas o beatmaker, isso se confunde.”
Bispo reforça. “Quando você mostra uma música para mim no violão, por mais que tenha escrito a música inteira —com melodia e tudo mais—, quando eu faço um beat, posso criar uma nota ou um fraseado que seja tão marcante quanto a letra. ‘Verdinha’, da Ludmilla, você reconhece quando começa o beat. Ela não faz parte da letra, faz parte da música.”
Além disso, com a música cada vez mais calcada em recursos digitais, a noção de composição vem mudando. As colaborações, menos dependentes de encontros presenciais, aumentam e se tornam mais fluidas. E isso é ampliado pelo modelo de produção a partir de samples, usado hoje em toda música pop.
Entre os 30 autores de “Sicko Mode”, de Travis Scott, há pelo menos sete pessoas que cantam na música, além do rapper e de Drake, algumas delas com participações quase imperceptíveis. O rapper Notorious B. I. G., morto nos anos 1990, é um dos compositores listados, já que tem uma música sampleada por Scott.
Nesse caso, não há um time de autores, e sim um artista trabalhando com vários participantes e os creditando como autores. Beyoncé, por exemplo, já creditou os autores de um tuíte —que virou letra— como coautor da faixa.
De certa forma, o ato de compor está ligado a juntar todas essas peças do quebra-cabeça —onde entram as vozes, as batidas originais, a participação especial, os trechos de samples, um instrumento de complemento e daí em diante.
Essa ideia de composição coletiva também está muito mais ligada à música que chega às paradas do streaming —que cada vez mais funcionam como ações na Bolsa. Ou seja, às canções que são pensadas para fazer sucesso.
“Tem artista que é apenas um produto, não cria. Sempre existirão artistas que criam e produzem sozinhos”, diz Zegon. “Hoje, produzir e gravar é muito mais fácil, a tecnologia é mais acessível. A tendência de supertimes está muito mais relacionada ao mainstream. O underground não precisa de ninguém para criar —e nunca precisou.”