Folha de S.Paulo

Extrema direita normaliza racismo

Anos de democracia não bastaram para tratar as mazelas do colonialis­mo

- Djamila Ribeiro Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenado­ra da coleção de livros Feminismos Plurais

Convido nesta semana para minha coluna Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo em Portugal e meu irmão na diáspora. Nesse texto fundamenta­l, Mamadou denuncia os ranços coloniais latentes na última eleição presidenci­al portuguesa, ocorrida no último domingo (24). Leia o texto.

As lutas anticoloni­ais ditaram a queda da ditadura fascista, mas Portugal ainda precisa se curar do colonialis­mo e do fascismo.

Os 45 anos de democracia não bastaram para tratar essas mazelas, que permanecem no subconscie­nte coletivo. Até a eleição de um deputado racista para o parlamento, alimentava-se a narrativa da exceção portuguesa numa sociedade obcecada pela absolvição histórica do passado colonial e escravista, mantendo o tabu do racismo fora da disputa política.

Cultiva-se a ideia de que, em comparação com outras atrocidade­s coloniais, o colonialis­mo português tem virtudes maiores que horrores. Formatou-se assim o imaginário coletivo a partir de uma mentira sobre a ignomínia colonial para não enfrentar a monstruosi­dade desta herança. Não se assume a responsabi­lidade da dívida histórica perante as vítimas do racismo, negando-se que colonialis­mo e escravidão são albergues fundaciona­is do racismo contemporâ­neo. Os setores mais reacionári­os se retroalime­ntam da negação e chantageia­m o espectro político democrátic­o para engrossar a narrativa negacionis­ta.

A eleição de um fascista cujo partido tem ligações com a extrema direita internacio­nal —incluindo o MBL, que destacou Renan Antônio dos Santos para estreitar laços com o movimento de Bolsonaro— abriu uma via verde para o racismo institucio­nal. Este partido tem uma estratégia de captura das instituiçõ­es do Estado, nomeadamen­te através da infiltraçã­o da extrema direita nas forças policiais e armadas, no contro lede suas associaçõe­s sindicais ena organizaçã­o da contestaçã­o social.

O partido tem o apoio de poderosos setores econômicos e financeiro­s, usa exércitos digitais para a disseminaç­ão de fake news e uma estratégia de dumping midiático para manipulara opinião pública.

Aluta contra o racismo e o regresso de supremacis­tas brancos se trava neste quadro. Segregação espacial, guetização urbana e precarieda­de habitacion­al, precarieda­de laboral e empobrecim­ento induzido, violência policial e enorme população negra nas prisões, exclusão e segregação escolar, estigmatiz­ação e invisibili­zação se arraigam num forte racismo estrutural. O privilégio brancos e alimentado­ra cismo institucio­nal.

A pandemia expôs ainda mais essa fratura. Entre os mais expostos ao contágio e abusos laborais, trabalhand­o em “setores vitais” da economia, a maioria é alvo de preconceit­o de gênero e de raça.

Seus salários não lhes permitem assegurar bens essenciais. Por essas razões, são vítimas preferenci­ais de despedimen­tos arbitrário­s e abusos de autoridade na gestão policial do estado de emergência. Confinar é um privilégio a que não têm acesso, ou morrem de fome.

Neste quadro, disputou-se uma eleição presidenci­al em que o candidato da extrema direita mobilizou uma vontade de fascismo e um desejo de apartheid, normalizan­do o discurso do ódio. Convocou o nacionalis­mo mórbido e usou a memória do passado que habita o território da raça, fundador da marginaliz­ação e exclusão das pessoas não brancas de qualquer humanidade.

Uma ideia de maturidade democrátic­a, assente na interpreta­ção lata da Constituiç­ão que acantona racismo e discurso de ódio na esfera da liberdade de expressão, facilitou tudo. O candidato da extrema direita ficou em terceiro lugar, com 11,9% de votos, metade de toda a esquerda junta, que ficou com 21,3%.

Apesar de tudo, o racismo ganhou centralida­de política.

O antirracis­mo conquistou espaço de pressão política, o que resultou na eleição —inédita em Portugal — de três deputadas negras para o parlamento.

Apesar dos avanços, o movimento não esgota a sua luta nesse exercício, continuand­o a sua mobilizaçã­o contra a violência policial e a criminaliz­ação das pessoas que sofrem preconceit­o racial, empenhando-se na luta para recolher dados étnicorrac­iais para criar políticas públicas contra as desigualda­des raciais por meio de medidas de reparação e ações afirmativa­s.

Para tanto, nossa tarefa mais urgente é reverter a atual tendência de fascismo e acumular forças para derrotar o racismo na sociedade lusitana.

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Linoca Souza

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