Folha de S.Paulo

PESSOAS TRANSGÊNER­O ENCONTRAM APOIO NA PERIFERIA PAULISTANA

Da esq. para a dir., Nicoly, Gabriela, Larissa e Hannah; no Dia da Visibilida­de Trans, celebrado hoje, conheça o cotidiano de moradoras de Paraisópol­is

- Dhiego Maia e Karime Xavier

Supermaqui­ada, cabelo preso num coque e trajando um vestido estampado, Hannah Saraiva, 29, não passa despercebi­da entre os becos e as ruelas por onde circula.

Faz cinco anos que a carioca vive com o namorado em Paraisópol­is, comunidade da zona sul vizinha ao Morumbi, bairro rico da zona oeste da capital paulista.

Dona de um português impecável, Hannah não quer ser reconhecid­a apenas como uma mulher trans, situação que a coloca numa gaveta, diz. “Sou múltipla.”

Já integrou o quadro de funcionári­os da Uber e, hoje, trabalha como analista de qualidade na Shopee, uma plataforma de comércio eletrônico criada em Singapura.

Fala seis idiomas, entre eles alemão, inglês e francês. E busca, no seu dia a dia, impulsiona­r a contrataçã­o de pessoas trans a partir do comitê de diversidad­e que comanda na empresa.

Em Paraisópol­is, diz ela, as cerca de 100 mil pessoas que subiram lajes em casas coladas umas nas outras estão ali por uma necessidad­e. “Eu cheguei aqui para me transicion­ar”, diz.

“Dei início ao processo de transição aqui. Tive, sim, muito medo da reação das pessoas, mas fui muito bem recebida”, afirma ela. “Na comunidade, não preciso dar carteirada­s para mostrar quem eu sou. Já fora daqui eu tenho que mostrar que sou poliglota e todos os cursos que fiz para ser respeitada.”

Nesta sexta-feira (29), dia em que é celebrada a visibilida­de trans, Hannah faz questão de abrir o livro da própria vida para incentivar meninos emeninas transgêner­o a saírem da sombra.

Hannah diz que começou seu processo de transição tomando hormônio e se vestindo como mulher, aos 13. Numa festa na região dos Arcos da Lapa, no centro do Rio, recebeu um conselho de uma travesti que mudou os rumos que tinha para o futuro.

“Sevo cê continuar nessa transição, o final disso será a prostituiç­ão ”, disse a travesti para Hannah. “Mas eu só queria uma vida normal. Pensava em concluir o meu curso de graduação já como uma mulher.

Os planos foram adiados, porém. Dos 13 aos 24 anos, Hannah viveu como um homem gay cisgênero —e muito infeliz.

Conseguiu graduar-se em letras e alemão na UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro). Só com o diploma nas mãos e vivendo em Paraisópol­is que Hannah pôde ser quem sempre quis.

Se pudesse voltar ao passado, a Hannah de 29 diria para ade 13 não desistir .“Se a sociedade te fecha aporta, pule a janela. Nãoép orque vocêéu ma trans que não pode ter acesso à educação”, afirma.

É oque também pensa Nicoly Rodrigues, apesar de não ter tido a chance de seguir os mesmos passos da amiga Hannah.

Criada em Paraisópol­is junto de seus cinco irmãos, Nicoly foi expulsa de casa aos 17 anos quando disse ser uma mulher trans. “Naquela época, como não existia isso de trans, eu me reconhecia como travesti”, afirma.

Tentou no meio do caminho concluir os estudos, mas não aguentou o preconceit­o que sofria de colegas e professore­s. “Sou negra, mulher trans e periférica. Não tem como uma pessoa como eu não sofrer preconceit­o”, diz.

Nas ruas, buscou o único caminho viável: a prostituiç­ão. “Não é uma vida para todo mundo. Eu digo para as mais jovens que é preciso estudar”, afirma.

Nicoly diz que o cotidiano de Paraisópol­is para uma trans é tranquilo porque todos se conhecem. Ela também cita as facilidade­s de ter acesso a comida e a moradia baratas e outros serviços à mão, como agências bancárias dentro da própria comunidade.

“Mas, aqui, o machismo e a transfobia também são fortes.” São os pequenos gestos de preconceit­o que a irritam. “Já houve situação de o preço de um produto ser mais caro para mim só pelo fato de eu ser trans”, conta.

A chegada dos 35 anos foi comemorada com parcimônia em 2020. Ela quer mesmo é ver os 36 anos chegarem em 18 de novembro para gritar com força que conseguiu “não entrar nas estatístic­as de violência”.

No Brasil, segundo entidades de direitos humanos, a média de vida de uma pessoa transgêner­o é de 35 anos — muito abaixo dos 76,6 anos, a expectativ­a de vida atingida pelo brasileiro em 2019, de acordo com o IBGE.

Hoje, além de modelo, Nicoly ganha a vida como assistente pessoal da miss bumbum Suzy Cortez, ganhadora do título de 2015.

Convidadas pela Folha, Hannah e Nicoly tiveram um encontro com outras duas meninas trans de Paraisópol­is bem mais jovens do que elas. Larissa Santos, 16, e Gabriela Lima, 18, já estão em fase avançada de transição.

“Elas terão muito ainda que aprender. Uma dica: tem que ser mais atenta em tudo e muito ligeira nesse mundo”, aconselha Nicoly.

As adolescent­es integram a geração selfie e buscam, nas publicaçõe­s lacradoras que fazem nas redes sociais, ingresso no concorrido mundo das influencia­doras digitais.

Larissa já amealhou, por exemplo, mais de 5.000 seguidores no Instagram.

Ambas têm consciênci­a de que herdaram um mundo com mais direitos. “Sabemos da luta que elas tiveram que travar. Mas o mundo ainda não é o ideal para os corpos como os nossos. A luta só está começando”, fala Larissa.

Nesta sexta, Gabriela diz que vai comemorar o seu dia com uma roupa “bafo e brilhosa” num passeio pela avenida Paulista, no centro. “Nem a máscara no rosto vai me impedir de mostrar ao mundo quem eu sou”, diz.

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Karime Xavier/Folhapress
 ?? Fotos Karime Xavier/Folhapress ?? Em sentido horário, Hannah Saraiva, 29, analista de qualidade da Shoppee; Gabriela Lima, 18, estudante; Nicoly Rodrigues, 35, assistente pessoal e modelo; e Larissa Santos, 16, estudante; as quatro mulheres vivem em Paraisópol­is, na zona sul de São Paulo
Fotos Karime Xavier/Folhapress Em sentido horário, Hannah Saraiva, 29, analista de qualidade da Shoppee; Gabriela Lima, 18, estudante; Nicoly Rodrigues, 35, assistente pessoal e modelo; e Larissa Santos, 16, estudante; as quatro mulheres vivem em Paraisópol­is, na zona sul de São Paulo
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