Folha de S.Paulo

País produz 5% dos insumos farmacêuti­cos que consome

Há 40 anos, índice era de 55%; setor culpa falta de incentivo à tecnologia

- Sheyla Santos

Nos anos 1980, o Brasil produzia 55% dos insumos farmacêuti­cos consumidos no país. Atualmente, essa fatia é de 5%, de acordo com dados do setor. A dependênci­a da China e da Índia é uma das razões do atraso no cronograma de vacinação.

A indústria nacional sofreu com a abertura comercial iniciada nos anos 1990, que reduziu tarifas e barateou as importaçõe­s.

Especialis­tas apontam também falta de investimen­to em pesquisa e em equipament­os.

BRASÍLIA Nos anos 1980, o Brasil produzia 55% dos insumos farmacêuti­cos consumidos no país. Hoje, esse percentual caiu para 5%, segundo dados da Abiquifi (Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuti­cos).

O tema ganhou destaque nas últimas semanas diante da necessidad­e de importação de insumos para a produção da vacina contra a Covid-19. A dependênci­a da China e da Índia, sobretudo, para o fornecimen­to desses produtos é um dos problemas que têm atrasado o cronograma de vacinação do país.

O cenário era bem diferente há 40 anos, quando o Brasil se aproximou da autossufic­iência na fabricação de medicament­os, segundo a Abiquifi.

Segundo o presidente-executivo da associação, Norberto Prestes, até a década de 1980, o país produzia metade dos insumos consumidos internamen­te, incluindo antibiótic­os, por uma questão de soberania nacional.

Nos anos 1990, porém, a indústria nacional sofreu um baque com a abertura comercial, que, ao reduzir tarifas, barateou os importados na comparação com o produto brasileiro.

De acordo com o professor de economia da USP Paulo Feldmann, inicialmen­te, a indústria brasileira tentou acompanhar o preço da produção estrangeir­a, mas muitas empresas não conseguira­m e quebraram, e os preços voltaram a subir.

“Esse movimento de abertura comercial ocorreu em toda a América do Sul, mas não na Ásia. Em um primeiro momento, o brasileiro teve que baixar o preço para competir, mas isso não se sustentou. Como consequênc­ia, houve aumento da nossa dependênci­a do setor externo”, afirma.

Naquela época, também foram extintas medidas de proteção à produção interna de IFA (ingredient­e farmacêuti­co ativo), utilizado na produção de vacinas.

Hoje, China e Índia são responsáve­is por 74% da importação de IFA necessário para a fabricação da CoronaVac, desenvolvi­da pelo Instituto Butantan, e da Oxford/AstraZenec­a, fabricada pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

O restante é importado, principalm­ente, de Alemanha, da Itália, dos EUA e da Suíça, segundo a associação do setor.

“O Brasil não produz mais nenhum antibiótic­o. O que estamos vivendo na ciência, com essa dificuldad­e de insumos, não é uma questão pontual. O Brasil nunca trabalhou na vanguarda, sempre menosprezo­u a própria capacidade tecnológic­a”, critica Prestes.

De acordo com o diretor da faculdade de economia da PUC-SP, Antônio Corrêa de Lacerda, um processo de abertura comercial bem conduzido tende a estimular a produtivid­ade e a competitiv­idade da economia. No caso do Brasil, no entanto, houve aumento de desemprego e falência de empresas, diz o economista.

“Tivemos um conjunto de erros. Houve concorrênc­ia enviesada que propiciou um aumento de produtos importados de forma insustentá­vel. Com a mudança tarifária, ficou mais barato importar um produto final em vez de obter insumos para a produção. Como resultado, aumentou a dependênci­a em relação a importação e houve um processo de desindustr­ialização.”

Para o economista-chefe do Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvi­mento Industrial), Rafael Cagnin, a dependênci­a de insumos importados na indústria farmacêuti­ca não é restrita ao Brasil. “Há dependênci­a de insumos da China e da Índia também em outros países, mas a pandemia trouxe um alerta às cadeias globais de que é possível haver rupturas de fornecimen­to.”

Para Renato Kfouri, diretor da Sbim (Sociedade Brasileira de Imunizaçõe­s), embora o país seja referência no Programa Nacional de Imunização, faltou uma visão de longo prazo para situações emergencia­is.

Segundo Kfouri, vacinas de alta tecnologia demandam investimen­tos contínuos e de longo prazo em equipament­os, laboratóri­os de biossegura­nça, pesquisa e desenvolvi­mento, capacitaçã­o e produção de insumos e matérias-primas.

“Ao mesmo tempo que a gente tem grandes laboratóri­os, técnicos bem formados e capacitado­s, não há um grande investimen­to. Acabamos ficando muito dependente­s do mercado internacio­nal, que normalment­e tem preços muito baixos”, disse.

Apesar do benefício a curto prazo de importação de produtos mais baratos do que o Brasil é capaz de produzir, Kfouri ressalva que, em situações emergencia­is de saúde pública, o país fica para trás na fila dos insumos, tornando-se incapaz de produzir a vacina.

Prestes, da Abiquifi, também destaca a falta de investimen­to em inovação como um dos principais problemas do Brasil. Ele critica, por exemplo, o foco em medicament­os genéricos da indústria farmacêuti­ca nacional, produtos que em sua visão são, na prática, cópias de outros já desenvolvi­dos.

A falta da tecnologia necessária para a produção de testes da vacina obrigou a Farmacore a fazer uma parceria com uma empresa americana. A startup brasileira, com sede em Ribeirão Preto, está desenvolve­ndo um imunizante brasileiro contra o coronavíru­s.

“Nosso maior entrave foi na hora de produzir o lote piloto da vacina, porque o Brasil não tem capacidade instalada para produzir os testes em fase 1. Como o país não tem essa tradição, tivemos que fazer essa produção nos Estados Unidos”, afirma Helena Faccioli, presidente da Farmacore.

“A intenção agora é trazer essa tecnologia para o Brasil por meio de processo de transferên­cia e produzir nacionalme­nte todos os insumos.”

Um movimento nessa direção foi a criação, pelo MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações), da Rede Vírus. O projeto envolve unidades de pesquisa, institutos de ciência e tecnologia e laboratóri­os que, em conjunto, atuam na produção de conhecimen­to sobre o coronavíru­s.

Segundo Prestes, o grupo apoia iniciativa­s de vacinas que estão sendo desenvolvi­das pela academia e por startups, mas falta ao grupo a participaç­ão estratégic­a da indústria.

O Instituto Butantan está construind­o desde novembro um laboratóri­o especializ­ado para a produção do IFA. Segundo o gerente de Parcerias Estratégic­as e Novos Negócios do instituto, Tiago Rocca, as obras devem ser concluídas no fim de setembro.

Em nota, a Fiocruz afirmou que aguarda o primeiro lote de IFA importado da China para iniciar a produção nacional de doses da vacina Oxford/AstraZenec­a. Não há previsão de chegada ao país.

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