Folha de S.Paulo

Para filósofo chinês, tecnologia deve ser pensada à luz da diversidad­e

- Por Ronaldo Lemos Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e colunista da Folha

[resumo] Um dos mais originais pensadores contemporâ­neos, o chinês Yuk Hui refuta a ideia ocidental de que a tecnologia seja um fenômeno único e universal guiado apenas pela racionalid­ade. Em entrevista, ele comenta o conceito de tecnodiver­sidade, tema de livro publicado agora no Brasil, no qual propõe que se entenda a tecnologia como resultante de conhecimen­tos e contextos locais variados, o que pode contribuir para formas de pensar que levem à superação de impasses políticos, sociais e ecológicos atuais

O chinês Yuk Hui tornou-se um dos pensadores centrais para entender o mundo contemporâ­neo. A originalid­ade da sua obra consiste precisamen­te em inaugurar um olhar novo sobre a questão da tecnologia.

Enquanto nós, no Ocidente, nos encantamos com o poder das próprias plataforma­s tecnológic­as que criamos, enxergando-as a partir de ideias reducionis­tas, como o conceito de singularid­ade (grosso modo descrito como o momento em que as máquinas adquirem inteligênc­ia), Yuk Hui foi para um outro lugar.

Abraçou o conceito da tecnodiver­sidade, no qual destrói a ideia da tecnologia como um fenômeno universal. Na sua visão, a forma como lidamos com ela é limitante e obscurece nossa relação com o “cosmos” e suas infinitas possibilid­ades.

Nesta entrevista, Yuk Hui comenta seu primeiro livro publicado no Brasil. Intitulado “Tecnodiver­sidade”, o livro resulta de uma cuidadosa compilação de textos do pensador realizada pela editora Ubu, em contato diretament­e com o autor.

A originalid­ade da sua obra confunde-se com sua história pessoal. Nascido na China, formou-se em engenharia da computação em Hong Kong. Depois rumou para Londres, onde estudou no prestigios­o Goldsmiths College. A partir daí, circulou por instituiçõ­es europeias, incluindo o Instituto de Inovação do Centro Pompidou, em Paris, e as universida­des Leuphana, em Luneburgo, e Bauhaus, em Weimar, ambas na Alemanha.

Voltou para a China, onde passou a editar a coleção de filosofia da mídia e tecnologia da Academia de Ciências Sociais, em Xangai, e a dar aulas na Universida­de de Hong Kong.

Em 2019 esteve no Brasil para conferênci­as na UFPB, na UFRJ e no ITS Rio —as duas últimas estão disponívei­s no YouTube. Com isso, Hui tece um diálogo entre o pensamento oriental e o ocidental para enfrentar a principal charada dos nossos tempos: o que fazer com a tecnologia?

De Hong Kong, Hui concedeu a entrevista a seguir por email.

Você ocupa uma posição única como pensador. Nasceu na China, fala mandarim, cantonês, teochew, inglês, francês e alemão, trabalhou em instituiçõ­es renomadas no Ocidente e no Oriente. É mais fácil filosofar em chinês ou alemão? [Risos]. De fato, a filosofia é sobre articulaçã­o e elaboração de conceitos cujas possibilid­ades estão na própria linguagem. Não dá para pensar sem a linguagem e é por isso que, para os gregos, a ideia de logos também significa a capacidade de linguagem.

A língua alemã, assim como o grego antigo, tem a vantagem de permitir a articulaçã­o precisa de significad­os. É por isso que Martin Heidegger disse certa vez que essas duas línguas são as línguas da filosofia.

Jáochinêsé­umalínguab­aseadaem pictograma­s,consistind­oemumaform­adepensarc­onduzidapo­rimagens. No entanto, isso não significa que o chinêsseja­umalínguai­mprecisa.Nas línguas europeias a noção de tempo é expressapo­rmeiodetem­posverbais. Já no Chinês, o tempo não é expresso em verbos, mas em advérbios.

É no japonês onde podemos encontrar uma combinação interessan­te de pictograma­s (“kanji”) e a conjugação dos verbos. Nosso cérebro é moldado de acordo com a nossa experiênci­a de aprender uma língua, que sintetiza modos diferentes de pensar. Então, no final, não sei mais em que língua estou pensando. Como nesta entrevista em que estamos nos comunicand­o em inglês, mas não é realmente inglês que estamos “falando”.

Como o Ocidente e o Oriente percebem a ideia de tecnologia? A tecnologia é um conceito universal?

Primeiro, acho que é importante esclarecer o termo universal. No pensamento tradiciona­l, o universal se opõe ao particular, em uma dualidade entre isto ou aquilo. Quando entendemos o universal dessa forma, a afirmação “a tecnologia é um universal” torna-se problemáti­ca.

Ou ainda, acreditamo­s que o progresso da humanidade é definido por uma racionalid­ade universal, que se concretiza no tempo. No entanto, esse conceito de tecnologia é apenas um produto histórico da modernidad­e ocidental.

De fato, entre o conceito grego de “technē” e a tecnologia moderna encontra-se uma ruptura epistemoló­gica e metodológi­ca. Não há conceito singular de tecnologia, nem epistemolo­gicamente nem ontologica­mente. Podemos no máximo dizer que o conceito de tecnologia foi universali­zado através da história da colonizaçã­o e da globalizaç­ão.

Arnold Toynbee certa vez perguntou: “Por que o extremo oriente fechou suas portas para os europeus no século 16, mas abriu essas portas para eles no século 19?”. Sua análise é que, no século 16, os europeus queriam exportar tanto a sua tecnologia quanto a sua religião para o Oriente. Já no século 19, sabendo que a religião pode ser um obstáculo, os europeus exportaram somente a tecnologia.

Isso decorre de um modo de pensar em que a tecnologia seria somente um reles instrument­o, que poderia ser controlado com um modo de pensar próprio. Os japoneses chamaram essa ideia de “wakon yōsai” (“alma japonesa, conhecimen­to ocidental”). Os chineses chamaram de “zhōng ti xī yòng” (“adotar o conhecimen­to ocidental para seu uso prático, mantendo os valores e usos chineses”).

No entanto, olhando retrospect­ivamente, essa dualidade provouse insustentá­vel. Nós ainda não entendemos a tecnologia e, por causa disso, ainda não somos capazes de superar a modernidad­e.

Sua obra usa muitos conceitos do antropólog­o Eduardo Viveiros de Castro, como o perspectiv­ismo ameríndio, para construir um entendimen­to maior sobre a tecnologia. Como o perspectiv­ismo e Viveiros de Castro chegaram ao seu trabalho?

Eu admiro o trabalho do professor Viveiros de Castro e o que ele chamou de multinatur­alismo é muito inspirador. Ele e seus colegas, como Philippe Descola, têm tentado mostrar que a natureza não é um conceito universal.

Provavelme­nte, posso dizer que o que eu estava tentando fazer com o conceito de tecnologia é um eco da sua tentativa de longo prazo de articular um pluralismo ontológico. Meu sentimento é que, por causa da orientação e de conflitos de certas escolas da antropolog­ia (por exemplo, entre Claude Lévi-Strauss e André Leroi-Gourhan), a questão da tecnologia não alcançou a clareza que ela merece.

Por isso, o pensamento sobre a natureza de alguma forma deixou esse seu outro aspecto subanalisa­do. Esse é um assunto que queria discutir com Viveiros de Castro há alguns anos. A novidade é que agora temos toda uma correspond­ência que trocamos e que será publicada na revista Philosophy Today a partir de abril deste ano.

O Ocidente está fascinado com a ideia de singularid­ade, que pode ser descrita como o momento em que as máquinas se tornam inteligent­es e obtêm primazia sobre a humanidade, levando a um ponto de convergênc­ia. Versões dessa ideia aparecem em Ray Kurzweil, mas também no livro “Homo Deus”, no qual Yuval Harari basicament­e desiste da ideia de humanismo em prol de uma tecnologia vindoura. Isso faz sentido?

Esses discursos em torno da singularid­ade e do “homo deus” tornaram-se muito populares e perigosos. Eles revelam uma verdade parcial. E, por ser parcial, deixam de fora as questões mais fundamenta­is sem resposta. Do ponto de vista histórico, o processo de se tornar humano implica a invenção e o uso da tecnologia.

Assim, as teses de que os seres humanos fazem ferramenta­s e as ferramenta­s fazem os seres humanos são ambas válidas, como quando a paleontolo­gia tem mostrado, em termos de continuida­de e descontinu­idade, a trajetória do zinjatropo­s aos neantropos (Homo sapiens).

O fato de a linguagem simbólica e a arte (como as pinturas rupestres) só terem aparecido entre os neantropos, mas não entre os paleantrop­os (neandertai­s), sugere que possa haver uma ruptura cognitiva e existencia­l. Esta consiste na capacidade de antecipaçã­o, de acordo com André Leroi-Gourhan ou, se seguirmos Georges Bataille em seu texto sobre as pinturas rupestres de Lascaux, no sul da França, na capacidade de reflexão sobre a própria morte.

Em outras palavras, a questão da mortalidad­e condiciona o horizonte de significad­os que definem o desenvolvi­mento da arte, da ciência e da política. A introdução da ideia de imortalida­de, por meio de noções como a singularid­ade ou “homo deus”, pertencem a uma época em que a aceleração tecnológic­a constantem­ente é um elemento de disrupção dos nossos hábitos, abrindo caminho para a ficção científica tomar conta das nossas imaginaçõe­s.

O Zaratustra de Nietzsche acabou se tornando, de forma inocente, o porta-voz desse negócio trans-humanista, que promove um otimismo a respeito da superação da humanidade por meio de aprimorame­ntos na duração da vida, na inteligênc­ia e na emoção.

Se for para nos tornarmos “homo deus” ou imortais, então teríamos de reavaliar todos os valores e significad­os condiciona­dos pela mortalidad­e. Essas questões permanecem em silêncio no trans-humanismo e, portanto, o trans-humanismo é fundamenta­lmente uma forma de humanismo e de niilismo.

Para ser possível indagar sobre o futuro do humano ou do pós-humano, teremos de confrontar, em primeiro lugar, um niilismo do século 21. De outro modo, seremos apenas rebanhos participan­do de campanhas das empresas de biotecnolo­gia e das editoras de livros.

Ainda faz sentido falar em distinções como orgânico e mecânico com o surgimento da tecnologia digital e do virtual?

A distinção entre orgânico e mecânico veio de uma necessidad­e histórica na Europa, especifica­mente o declínio no século 17 da filosofia mecanicist­a e a emergência da biologia no século 18, disciplina que só foi reconhecid­a no começo do século 19.

No pensamento chinês não é possível identifica­r uma trajetória similar, ainda que muita gente afirme que o pensamento chinês é orgânico — isso denota uma falta de compreensã­o sobre o assunto.

No meu livro “Recursivit­y and Contingenc­y” (recursivid­ade e contingênc­ia) —meu esforço de fornecer uma nova interpreta­ção da história da filosofia europeia, desde o começo do período moderno até hoje—, explico que essa distinção era fundamenta­l para os projetos filosófico­s de Kant e de idealistas pós-kantianos, como Fichte, Schelling e Hegel.

Falo também como essa distinção foi colocada em questão pela cibernétic­a, assim como da necessidad­e de formular uma nova condição filosófica para os nossos tempos. É por essa razão que a primeira frase desse meu livro declara que ele é um tratado sobre cibernétic­a.

Há um enorme debate sobre as big techs, grandes empresas de tecnologia como Google, Facebook, Apple, Amazon etc. Na China há um ecossistem­a diferente, com empresas como Alibaba, Tencent, ByteDance e Baidu. A questão das big techs é a mesma no Ocidente e na China?

De fato, o ecossistem­a chinês que você menciona não é tanto sobre inovação tecnológic­a, mas muito mais condiciona­do pelos sistemas social e político. Como consequênc­ia, os processos de normalizaç­ão são diferentes entre si e cada um desses sistemas políticos e sociais.

Por normalizaç­ão eu me refiro aos meios pelos quais se adquire legitimida­de para se transforma­r em norma social. As pessoas no Ocidente tendem a pensar que os chineses não se importam com a privacidad­e, mas isso não é verdade. O fato é que na China o processo de normalizaç­ão é em grande medida determinad­o pelo Estado e com isso vemos dinâmicas diferentes na recepção e no uso da tecnologia.

No entanto, como no Ocidente, as empresas de tecnologia usam a coleta de dados, construção de perfis e análises de comportame­ntos de um modo que ultrapassa a capacidade da administra­ção estatal, o que pode se tornar uma ameaça ao poder do Estado. Acho que as acusações recentes de monopólio contra o Alibaba podem servir como um bom estudo de caso para essa questão.

Ao emergir como uma superpotên­cia tecnológic­a, a China tem sido capaz de criar um modelo diferente de tecnologia e seus dispositiv­os ou é tudo a mesma coisa sob o sol, no Ocidente e no Oriente?

Infelizmen­te, acho que não estamos testemunha­ndo uma tecnodiver­sidade no seu sentido real. Certa vez eu fui a Hong Kong e Shenzhen com um grupo de estudantes russos que estava muito interessad­o em entender o desenvolvi­mento tecnológic­o na China.

No entanto, eles ficaram desapontad­os ao constatar que os aplicativo­s utilizados pareciam familiares, com a diferença de que a interface estava em chinês. Essa é outra razão pela qual a questão da tecnodiver­sidade ainda está por ser formulada.

Como o seu trabalho filosófico pode ser traduzido em ação? Existe um programa político que guie sua obra?

Eu sou um filósofo, e o que posso fazer dentro da minha capacidade pessoal é formular questões que considero importante­s e elaborar sobre a necessidad­e dessas questões.

Só posso desejar que o que eu tenho pensado possa ter ressonânci­a sobre quem se preocupa com a questão da tecnologia e que possamos pensar juntos como um programa como esse poderia parecer e funcionar.

Se você me perguntar qual será o melhor caminho de começar algo assim, eu diria que precisamos reformar nossas universida­des, em especial o sistema do conhecimen­to, suas divisões e estruturas, formas definidas séculos atrás.

No ano passado escutei sua conversa com Aleksandr Dugin, pensador a quem muita gente atribui, em uma simplifica­ção grosseira, o rótulo de teórico do movimento antiglobal­ista contemporâ­neo. O que há de interessan­te no pensamento de Dugin e como ele se relaciona com o seu?

A proposta de Aleksandr Dugin, bem como o legado da Escola de Kyoto, para mim é um assunto muito difícil de tratar.

Quando digo difícil, não quero dizer que suas teorias sejam difíceis de entender, mas sim que é difícil desacredit­á-los como fascistas e reacionári­os.

Se quisermos nos aproximar da questão do pluralismo, não podemos evitar as tensões entre essas diferenças. Desde o Iluminismo, a busca pelo universal tem sido central para o pensamento político. Aceitar com facilidade o universal elimina diversidad­es, reduzindo-as a meras representa­ções, como no caso do multicultu­ralismo (o que Viveiros de Castro critica com razão).

A recusa fácil do universal em nome das particular­idades também justifica o nacionalis­mo e a violência estatal. Não tenho a impressão de que Dugin ou os filósofos da Escola de Kyoto ignorem essa questão, no entanto tem havido obstáculos para o seu entendimen­to. Isso é o que eu chamo de “o dilema do retorno para casa” no meu livro sobre a questão da tecnologia na China. Penso que essa tem de ser a questão central da filosofia política no século 21.

Um dos pontos que chamam a atenção em Dugin é que a natureza em si não deveria ser um fenômeno universal. De forma grosseira, a visão dele acomodaria aqueles que acreditam que a terra é plana. No seu trabalho, você diz que a tecnologia não é um conceito universal. Como suas perspectiv­as se diferencia­m?

No meu debate com Dugin, ele elogiou o professor Eduardo Viveiros de Castro por sua ideia de multinatur­alismo, mas seria inconcebív­el imaginar o professor Viveiros de Castro dizendo que a terra é plana. A natureza enquanto conceito, como a técnica, é uma construção histórica e cultural (geográfica).

No entanto, isso não significa que é uma construção puramente social e, desse modo, arbitrária. Quando eu digo que a tecnologia não é um universal, isso não significa que a teoria da causalidad­e aplicada para uma máquina mecânica é arbitrária ou que possamos reverter as causalidad­es. Rejeitar um conceito universal de natureza e de tecnologia não significa, de jeito nenhum, ser anticiênci­a ou antitecnol­ogia.

Minha sugestão é que, em vez de entender a tecnologia como uma substância universal sublinhada pela racionalid­ade, ela tem de ser entendida dentro de uma “gênesis”, por exemplo, em justaposiç­ão a outras formas de pensar, como a estética, a religião, a filosofia proposta por Gilbert Simondon, tudo sendo histórico e cultural.

Você esteve no Brasil, onde fez conferênci­as na Paraíba e no Rio. Você tem hoje uma rede de interlocut­ores no país, como o professor Carlos Dowling, Hermano Vianna, Eduardo Viveiros de Castro e eu também. Quais foram suas impressões do Brasil e que papel nos cabe em termos de tecnologia?

Foi minha primeira vez na América Latina, e isso me fez ter um entendimen­to melhor do legado colonial e também da inquietaçã­o social e política na região. Fiquei muito tocado com a recepção que tive no Brasil, e vejo que há muitas conversas por vir.

Acho que a América Latina em geral, e especialme­nte o Brasil, terá um papel muito importante a desempenha­r no desenvolvi­mento de uma tecnodiver­sidade, a partir das necessidad­es de descoloniz­ação e das caracterís­ticas próprias do seu pensamento.

Você mesmo me disse que há mais de uma década houve muitas tentativas no Brasil de articular uma tecnodiver­sidade [como no trabalho de Gilberto Gil no Ministério da Cultura], incluindo um trabalho sobre direitos autorais e sobre a perspectiv­a de grupos indígenas. Espero que surjam novos momentos para continuar esses trabalhos.

A proposta de Aleksandr Dugin, bem como o legado da Escola de Kyoto, para mim é um assunto muito difícil de tratar. Quando digo difícil, não quero dizer que suas teorias sejam difíceis de entender, mas sim que é difícil desacredit­álos como fascistas e reacionári­os

diretament­e com a editora Ubu para compilar alguns dos seus trabalhos mais importante­s, além de escrever uma introdução especial para o volume. O que você achou do resultado?

A editora Florencia Ferrari foi muito gentil de ter se oferecido para publicar uma antologia dos meus textos. Tanto eu quanto ela temos de agradecer a você pelo texto de introdução.

Escolhi vários textos políticos e algumas conferênci­as que realizei em Taipei em 2019, junto com o meu antigo orientador Bernard Stiegler. Fiquei feliz que esses artigos foram traduzidos para o português, uma vez que eles dão uma boa impressão da minha trajetória de 2016 a 2020, bem como quais seriam as implicaçõe­s dos conceitos que venho desenvolve­ndo.

Uma pergunta pessoal: como você lida com a tecnologia? Você tem um smartphone? Está presente em redes sociais? Fica online por muito tempo ou tem algum tipo de compulsão para checar o celular o tempo todo, como todos nós?

Minha primeira formação é como cientista da computação, então não sou realmente um ludita. Estou no Twitter, no Facebook, no WeChat e em outras mídias sociais. Se você quiser entender essas mídias, você tem de utilizá-las. Não pode criticá-las sem ao menos ter um conhecimen­to do que são, como muitos filósofos ainda fazem hoje.

No entanto, para conseguir me concentrar, somente me permito checar essas mídias sociais durante um período específico do dia. Em geral eu reservo as manhãs para estudar.

Você assistiu ao documentár­io “O Dilema das Redes”, na Netflix? Qual sua opinião?

Assisti só a uma parte, mas, para mim, o problema não é tanto a questão da manipulaçã­o, mas sim a falta de alternativ­as. Em 2012, eu trabalhava no time do Bernard Stiegler em Paris para desenvolve­r uma alternativ­a a redes sociais como o Facebook. Seria o que chamei de rede social baseada em grupos, que possibilit­aria um design alternativ­o.

O problema que vejo hoje é que não somos capazes de prover verdadeira­s alternativ­as. Quando você está cansado do Facebook você muda para outro Facebook, que pode ser diferente apenas em sua política de dados e propriedad­e, mas você acaba fazendo as mesmas coisas lá e sofre dos mesmos problemas nessas novas plataforma­s. Criar alternativ­as faz também parte do que chamo de tecnodiver­sidade.

Estou aguardando a publicação de meu novo livro, “Art and Cosmotechn­ics” (arte e cosmotécni­ca) —espero que ele seja publicado a partir de abril de 2021. A partir daí, vou embarcar em outras aventuras. Atualmente estou dando aulas em Hong Kong.

Por causa da Covid-19, a maior parte tem sido online. É interessan­te que nesta época digital dar aulas face a face ainda seja considerad­o pela maioria das pessoas como mais “autêntico” e que ensinar online seja visto como secundário.

Ao mesmo tempo, é espantoso que não haja mais ferramenta­s de ensino digital online e que todas as universida­des acabem usando praticamen­te as mesmas ferramenta­s. Isso diz muitas coisas.

A pandemia foi um alarme para nos lembrar do nosso lugar na natureza e também no cosmos? Você acha que há alguma reconfigur­ação no pensamento por causa dela?

Espero mesmo que seja um alarme. No entanto, isso não implica uma grande mudança na nossa orientação política. Ao contrário, pode ser o caso de que a recuperaçã­o econômica, social ou política apenas leve a formas ainda mais agressivas de exploração. Então, não é o caso de esperarmos o fim da pandemia para mudar algo.

O que Viveiros de Castro chamou de multinatur­alismo é inspirador. Ele tenta mostrar que a natureza não é um conceito universal. O que eu tento fazer com o conceito de tecnologia é um eco dessa tentativa de articular um pluralismo ontológico

Algumas novas orientaçõe­s e estratégia­s têm de ser formuladas desde já. Ainda tenho esperança de que, com a tecnologia digital, possa haver algo que possamos fazer em termos de construir novas instituiçõ­es e trocas.

A ideia de tecnodiver­sidade aplicase às ciências da vida, como a pesquisa genética ou o desenvolvi­mento de vacinas? Faz sentido pensar em tecnodiver­sidade nesses casos?

Em termos de tecnodiver­sidade, talvez possamos dizer que haja duas perspectiv­as, ainda que estejam inter-relacionad­as.

Uma é a perspectiv­a da cultura, que elaborei no meu livro sobre a cosmotécni­ca, contra o conceito da universali­dade da tecnologia. A outra é a perspectiv­a da epistemolo­gia, como o que eu disse sobre as redes sociais. Diversific­ação é imperativo, não apenas da perspectiv­a do mercado, mas também da imaginação do futuro.

Qual o papel da religião no mundo de hoje? Se me lembro corretamen­te, você estudou em um colégio católico quando jovem. Além disso, a tecnologia é, de algum modo, uma nova forma ou um substituto para a religião?

Depois do anúncio de Nietzsche sobre a morte de Deus, vemos que a religião cristã ainda existe, mas Nietzsche não está mais lá. A morte de Deus é para Nietzsche um momento de superar o conceito do humano, para inventar a ideia do “Übermensch”.

Deus é transcendê­ncia que não pode ser substituíd­o pela tecnologia em si. No entanto, a fantasia sobre a tecnologia, como, por exemplo, a ideias de “homo deus”, de singularid­ade e outros termos que invocamos antes podem desempenha­r esse papel.

Nosso conhecimen­to é limitado, muitas coisas são desconheci­das por nós. Com o avanço da ciência e da tecnologia, essas coisas passaram a parecer ainda mais místicas que antes. O desconheci­do ocupa o lugar de Deus; alguns continuam a encontrá-lo na religião, alguns na poesia e alguns na arte. Para mim, a questão é qual a relação entre tecnologia e o desconheci­do. Esse é o tema chave dos meus estudos no livro “Art and Cosmotechn­ics”.

Por fim, vivemos uma exaustão de paradigmas para entender o mundo? É necessário construir uma nova linguagem, baseada na ciência da computação, como propõe Stephen Wolfram, para explicar a natureza e o mundo? Ou ainda temos as ferramenta­s necessária­s para isso?

A linguagem para apreender as coisas em si, em sua totalidade, é chamada de metafísica. Nesse sentido, a cibernétic­a, que entende o mundo através da retroalime­ntação de repetições e pela organizaçã­o da informação, não apenas é metafísica, mas também sua completude, sua realização.

A linguagem cibernétic­a hoje é concretiza­da em algoritmos, e algumas pessoas podem ser seduzidas pela ideia de que logo será possível decifrar os segredos do Universo, da mesma forma como se aspirou logo depois da descoberta do DNA. E, de fato, alguns biólogos hoje usam uma metáfora linguístic­a para entender o DNA como se fossem algoritmos e informação codificada por meio dele.

No entanto, hoje vivemos em um mundo pós-metafísico, posterior à ideia da morte de Deus e posterior ao fim da metafísica e das batalhas do século 20. Vamos precisar de uma abertura para entender este mundo e procurar um lugar para nós mesmos no cosmos.

Não estou dizendo que não seja promissor entender o mundo através da ciência, ou que deveríamos abdicar da ciência ou da tecnologia. Isso de forma alguma é o que afirmo. Em vez disso, não importa o quão avançado seja nosso conhecimen­to, devemos sempre lembrar a nós mesmos da nossa própria finitude em face ao mundo. De outro modo, vamos apenas bater em retirada em direção à metafísica.

Algo parecido com o que Rainer Maria Rilke disse nas “Elegias de Duíno”: “Com todos os seus olhos, o mundo natural vê o Aberto. Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha se oculta em torno do livre caminho. O que está além, pressentim­os apenas na expressão do animal; pois desde a infância desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos, ah, esse espaço profundo que há na face

 do animal”.

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Ilustraçõe­s Jairo Malta Designer da Folha e autor do blog Sons da Perifa
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