Folha de S.Paulo

MÔNICA BERGAMO

Primeira mulher escalada para atuar no Mundial de Clubes da Fifa, árbitra paranaense afirma sentir pressão por representa­r a categoria, celebra cresciment­o do futebol feminino no país e nega rótulo de feminista

- MÔNICA BERGAMO Victoria Azevedo monica.bergamo@grupofolha.com.br

Se vai mal, vão dizer que mulher não é capaz, diz 1ª árbitra a ir para o Mundial

Edina Alves diz que nunca escondeu de ninguém o seu sonho de ser árbitra de futebol. “No curso de formação, eu era a única da sala que levantava o dedo quando perguntava­m quem queria ser árbitra. Todas queriam ser assistente­s”, conta.

“Os homens já têm um selo de qualidade no futebol. Eles nascem e ganham uma bola. Nós ganhamos uma boneca”, segue. “Poucas pessoas acham que nós, mulheres, temos capacidade de conduzir uma partida de futebol, ou de ser Presidente da República, presidente de um clube.”

A paranaense foi escalada para apitar o Mundial de Clubes da Fifa (Federação Internacio­nal de Futebol), que ocorre no Qatar entre 1º e 11 de fevereiro —ela será a primeira mulher na história a comandar uma partida em torneios profission­ais masculinos da Fifa. A árbitra viajou na quarta (27) e ficará isolada por sete dias em seu hotel, medida que integra protocolo para evitar o contágio da Covid-19.

“Se fosse para pensar na minha carreira, é uma conquista única, claro. Mas comigo estão milhares de mulheres que lutam para vencer na vida, nas suas profissões.”

Aos 41 anos, acumula outros marcos importante­s. Em 2019, foi responsáve­l por quebrar um hiato de 14 anos sem árbitras mulheres na Série A do Campeonato Brasileiro masculino. Na ocasião, apitou um jogo entre CSA e Goiás. E diz que a partida foi a mais difícil de sua carreira até então.

“Os olhos estavam todos em mim. Com isso vem a responsabi­lidade de saber que depende de mim também o cresciment­o da arbitragem feminina. Não é fácil estar à frente porque pode respingar em quem vem atrás. Se você vai mal, cai tudo por terra. Todo mundo vai dizer ‘ah, mulher não aguenta’ ou ‘mulher não tem capacidade’.”

“Se eu cometer um erro, que eu seja punida. E não as outras mulheres. Não tem nada a ver isso. Quero que sejamos tratadas como a Edina, a Maria, a Joana etc. Assim como [são tratados] o Joaquim, o José. Já melhorou muito, mas infelizmen­te as coisas ainda não são assim.”

Em 2019, também atuou na Copa do Mundo feminina, na França, apitando quatro jogos, como a semifinal entre Estados Unidos e Inglaterra.

Edina conversou com a coluna por videochama­da direto da sala de seu apartament­o em Jundiaí, em São Paulo. Atrás dela estavam dispostas em prateleira­s as bolas de partidas importante­s que já apitou, como as da Copa do Mundo e a final do Campeonato Paulista feminino de 2019, e medalhas que conquistou. “São meus troféus, meus xodózinhos”, diz, entre risos.

Vestia uma camisa azul da seleção brasileira feminina (presente que recebeu quando apitou uma partida do time) que contrastav­a com o brilho de uma correntinh­a. “Só tiro ela para apitar”, diz, enquanto exibe os dois pingentes: um apito e uma imagem de Nossa Senhora, de quem é devota.

Nascida em Goioerê, município paranaense de 28 mil habitantes, Edina é a terceira de quatro filhos. Seu pai era caminhonei­ro e sua mãe é dona de casa. Ela se emociona ao falar da mãe, que enfrenta um câncer. “É uma coisa que mexe muito comigo, até no meu desempenho. Vejo que não estou fazendo excelentes partidas como vinha fazendo. É difícil você estar focada 100%”, diz, com a voz embargada.

Ela afirma que conta com a ajuda de duas psicólogas, uma da Confederaç­ão Brasileira de Futebol (CBF) e outra da Federação Paulista de Futebol. “Elas estão me ajudando muito. Ajudam a esquecer de tudo quando a gente entra dentro do campo. Temos que ter essa preparação, porque não é fácil.”

“Somos seres humanos comuns, passíveis de erros. E ninguém aceita erro de árbitro. O atleta erra um gol, um passe, e isso fica pra trás. Agora, o do juiz sempre vai ser lembrado e comentado.”

Uma de suas primeiras lembranças relacionad­as ao esporte foi quando organizou um time masculino para participar de jogos entre escolas —não havia mulheres suficiente­s para montar uma equipe feminina. Aos 16 anos, jogava futsal e basquete e era presidente do grêmio estudantil.

E conta que foi esse jeito firme e de liderança que chamou a atenção do pai de uma amiga sua, que a convidou para apitar sua primeira partida. “Quando eu vi, já tava lá dentro, com aquela adrenalina. Aí, não consegui sair mais”, diz. Foi ele quem recomendou que ela fizesse um curso pela Federação Paranaense.

Para arcar com os custos, arranjou um emprego num viveiro de mudas. “Chegava cedo, tipo 5h da manhã, e começava a encher os saquinhos de terra. Se eu enchesse 1.000 saquinhos no mês eu conseguia um salário mínimo”, conta.

A prefeitura do município disponibil­izou um carro para ela e outros três colegas que fariam o curso. “A gente pagava o combustíve­l e a alimentaçã­o do motorista. Teve dia que andamos 510 km para assistir a uma aula”. Hoje, acumula duas décadas na profissão. E enche o peito para dizer que, com o dinheiro que ganhou trabalhand­o com arbitragem, conseguiu pagar um curso de Educação Física na Universida­de Paranaense, em Umuarama.

Na hora de apitar, diz que não acha que um jogo masculino é mais difícil que o feminino, ou vice-e-versa. Mas enxerga que o futebol das mulheres é mais coletivo, tem mais técnica, enquanto o dos homens é mais individual. Ela conta que corre em média 12 km por jogo. Para isso, treina ao menos 40 minutos todos os dias, de segunda a domingo —no mês, tem apenas quatro dias de folga.

Edina diz que não se incomoda com xingamento­s nos estádios, apesar de reconhecer que “tem gente que extrapola”. Afirma que repudia qualquer ato de violência ou preconceit­o. “Estamos em 2021 e muitas coisas que vemos acontecer, como o racismo, estão erradas.”

Ela não se considera feminista. “Sou uma pessoa que quer trabalhar. Não quero que exista esse negócio de gênero. A mulher pode fazer o que ela quiser e o homem também.”

“Os homens já têm um selo de qualidade no futebol. Eles nascem e ganham uma bola. Nós ganhamos uma boneca

Ela se empolga ao comentar o cresciment­o da modalidade feminina no país, assim como os espaços que mulheres têm ocupado em outras posições, como comentaris­tas e narradoras. “Isso é tudo uma evolução que vem vindo, vem vindo e só tende a crescer. É uma maravilha você ver uma mulher narrando futebol. Puts, isso é muito legal!”

Entre seus ídolos da arbitragem estão Héber Roberto Lopes, Bibiana Steinhaus, Silvia Regina e Léa Campos. E enxerga um “momento maravilhos­o” na arbitragem brasileira nos dias de hoje. “Se você pega a escala da CBF, você vê meninas trabalhand­o nas séries A, B, C, D, na base. Em tudo quanto é lugar.”

Edina diz que pretende continuar trabalhand­o por mais uns três anos —ela está no processo de seleção para atuar na próxima Copa do Mundo feminina, em 2023, na Austrália e na Nova Zelândia.

Além disso, quer um dia ser mãe. “Mas não para deixar filho na mão dos outros. Quero acompanhar todos os passos, viver intensamen­te. E não tem como conciliar tudo isso com o que está acontecend­o na minha vida agora.”

“Sempre quis representa­r o meu país. Hoje, posso fazer isso na arbitragem. Quando você quer jogar, você quer estar entre os melhores, quer ser campeão, estar no topo. E sinto isso também. Muita gente diz que posso ficar até os 50, porque os homens estão apitando até essa idade. Mas não quero segurar o escudo só por segurar.”

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Loic Venance/AFP A árbitra Edina Alves durante partida em 2019
 ?? Diego Vara/Reuters ?? A árbitra Edina Alves em partida realizada em Porto Alegre no dia 10 de janeiro
Diego Vara/Reuters A árbitra Edina Alves em partida realizada em Porto Alegre no dia 10 de janeiro

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