Folha de S.Paulo

Projeto perigoso

Texto que dá autonomia à PM mistura de modo temerário interesses da corporação e de Bolsonaro

-

Sob a regulação de um decreto de 1969, as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros carecem há décadas de uma nova legislação que substitua regras cinquenten­árias adotadas na ditadura. Cumpre tornar essas forças de segurança mais democrátic­as, eficientes e transparen­tes, em conformida­de com a Constituiç­ão de 1988.

Tal objetivo é colocado em risco, porém, em projeto ora em debate no Congresso Nacional —com atenção do Planalto. O texto, que merece maior escrutínio da sociedade, altera a lei orgânica da PM.

O fato de competir privativam­ente à União legislar sobre a organizaçã­o das polícias atende aos interesses do presidente Jair Bolsonaro, que tem a oportunida­de de negociar demandas de sua base de apoio entre agentes de segurança.

A proposta em tela foi elaborada com a ajuda de entidades de classe de oficiais militares, o que se traduz em seu viés corporativ­ista. Uma das providênci­a mais vistosas é a criação de um novo patamar hierárquic­o, de general, mirando a estrutura das Forças Armadas.

As mudanças implicam redução do poder dos governador­es, que escolhem os comandante­s-gerais das corporaçõe­s —estes passariam a ter mandato fixo.

Ademais, ao criar um certo Conselho Nacional de Comandante­s Gerais da Polícia Militar, com assento nos ministério­s da Defesa e da Justiça, a proposta desloca o “locus” de poder das polícias do âmbito estadual para o federal.

Trata-se de uma reformulaç­ão do modelo federativo brasileiro que tornaria as Polícias Militares, hoje estaduais, em entes autônomos como os Ministério­s Públicos.

Observe-se, a esse respeito, que se trata de forças com a prerrogati­va do uso de armas —e que está instalado no Planalto um presidente disposto a incitar abusos. Recorde-se, por exemplo, a mal disfarçada simpatia de Bolsonaro pelo estapafúrd­io motim de PMs do Ceará no ano passado.

As Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros são, nos termos da Constituiç­ão vigente, “forças auxiliares e reserva do Exército [que] subordinam-se, juntamente com as Polícias Civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos governador­es” (artigo 144, § 6º).

Dar autonomia às corporaçõe­s e expandir o número de níveis hierárquic­os vão no sentido contrário a essa norma, sem explicação alguma que não a autoproteç­ão das próprias polícias. No cenário atual, é casuísmo dos mais perigosos.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil