Folha de S.Paulo

Vacinação atabalhoad­a

Pulverizaç­ão de doses mostra que desaprende­mos

- Carla Domingues e Drauzio Varella Epidemiolo­gista e doutora em saúde pública, é ex-coordenado­ra do Programa Nacional de Imunizaçõe­s do Ministério da Saúde (2011-19)

Passamos um ano na ansiedade à espera da vacina. Agora, assistimos às confusões causadas pelo início de um processo de vacinação com escassez de imunizante­s. Se há uma área da saúde em que temos experiênci­a é a das campanhas conduzidas pelo Programa Nacional de Imunizaçõe­s (PNI), reconhecid­o pela OMS como um dos maiores do mundo.

Com mais de 37 mil salas de vacinação instaladas no país, que contam com um técnico vacinador, sob a supervisão de uma enfermeira, e com uma geladeira capaz de manter temperatur­as entre 2 ºC e 8 ºC, o PNI realizou campanhas gigantesca­s. Chegamos a imunizar 18 milhões de crianças contra a poliomieli­te num único dia. Em 2010, vacinamos 100 milhões de pessoas contra a H1N1 em apenas três meses. Sem falar das campanhas anuais contra a gripe que, em 2020, proporcion­aram a imunização de 80 milhões.

Apesar da expertise, vacinar contra a Covid-19 é um desafio: pela primeira vez começamos uma campanha sem vacinas suficiente­s, que exigem a aplicação de duas doses em curto intervalo de tempo e um sistema de informação nominal para identifica­r qual foi o imunizante e marcar a data da segunda dose.

O Ministério da Saúde definiu que a campanha deverá ocorrer em etapas. Como a primeira fase inclui 15 milhões de pessoas, necessitar­emos de 30 milhões de doses para cumpri-la. Lamentavel­mente, no primeiro momento, estavam disponívei­s apenas 6 milhões de doses da Coronavac. O ministério recomendou que fossem vacinados apenas os trabalhado­res da área da saúde que exercem suas funções nos serviços de emergência­s ou na atenção básica, pública ou privada, em contato direto com casos confirmado­s ou suspeitos de Covid-19.

Em virtude da escassez, facultou aos estados e municípios a possibilid­ade de adequar as prioridade­s de acordo com a realidade local. Tal recomendaç­ão, sem detalhar com rigor os profission­ais que deveriam ser alvo da vacinação, abriu a possibilid­ade de que outras pessoas furassem a fila.

Na situação trágica em que Manaus se encontra, por exemplo, a vacinação teve que ser interrompi­da por ordem judicial para que as prioridade­s fossem respeitada­s. Ao Hospital das Clínicas, de São Paulo, foram antecipada­s 30 mil doses, que acabaram aplicadas não só em funcionári­os da linha de frente —enquanto hospitais do estado e da prefeitura paulistana receberam doses insuficien­tes. Para aumentar a confusão, o Ministério da Saúde incluiu mais grupos prioritári­os, como os veterinári­os, por exemplo.

Em outra demonstraç­ão de que no atual governo desaprende­mos como vacinar, as doses foram pulverizad­as pelos 5.570 municípios, mesmo sabendo que muitos deles não dispõem de hospitais nem unidades de emergência, além de terem poucos casos da doença. A experiênci­a em campanhas de vacinação contra a gripe mostra que essa estratégia não se justifica quando há falta de vacinas.

Na distribuiç­ão de cerca de 1,8 milhão de doses da vacina da Oxford/ AstraZenec­a repetimos o mesmo erro. Cada município receberá em média 300 doses. Qual será o impacto de quantidade­s tão ínfimas? Quem fiscalizar­á as filas de vacinação nos municípios mais distantes?

Apesar da dedicação de nossos vacinadore­s, encontramo­s cadernetas sem o registro de qual vacina foi administra­da e sem agendament­o da segunda dose. Parece que não houve a devida orientação sobre a importânci­a deste registro ser realizado de forma correta.

Por solidaried­ade, os governador­es concordara­m com o envio de 5% desse lote para o Amazonas. Foram enviadas 130 mil doses. Em Manaus, a população acima de 60 anos somada aos grupos com comorbidad­es é de 200 mil pessoas (400 mil no estado inteiro). Com o colapso do sistema de saúde, a vacinação de todos, no menor prazo de tempo, seria mais efetiva —principalm­ente no contexto da circulação da nova variante da cepa do coronavíru­s naquela região.

Ainda não foi divulgado o número de pessoas vacinadas no país, dado que era publicado no site do ministério, diariament­e, nas campanhas anteriores. O sistema de informação criado pela pasta está funcionand­o? Sem saber em tempo real como as duas doses de cada vacina estão sendo aplicadas nos municípios, a avaliação da evolução da vacinação será uma tarefa complexa.

É fundamenta­l começarmos a cadastrar os grupos com comorbidad­es, professore­s, forças de segurança e os demais, definidos pelo ministério, para não correr o risco de assistirmo­s ao caos instalado agora.

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